Depois de massacre, povo Juma luta para sobreviver em meio a invasões e desmatamento
13 min readA Terreno Indígena (TI) Juma está a somente 5 quilômetros da BR-230, que termina na cidade amazonense Lábrea. Isso significa que, por terreno, invasores só precisam marchar por tapume de três horas na floresta amazônica para chegar ao território onde vivem os Juma, um povo de recente contato que, em 1964, sofreu um massacre. Mais de 60 pessoas morreram. Exatos 60 anos depois, os sobreviventes, seus filhos e netos, seguem ameaçados. Desta vez, pelo progressão do desmatamento no sul do Amazonas, antes considerado uma das áreas mais preservadas do estado. Porquê são poucos, se sentem em risco.
“Os invasores entram e alegam que não sabem os limites do território do povo indígena Juma”, afirmou a cacica Boreá Juma à Filial Pública. Ela conversou com a reportagem em sua língua nativa, a Kagwahiva, da família Tupi-Guarani, falada por sete povos na Amazônia. Boreá sabe muito o que está acontecendo em seu território e nas redondezas de sua terreno tradicional, na qual nasceu, cresceu e viu seus ancestrais partirem e deixarem legado e histórias para recontar.
De negócio com a cacica, as derrubadas de mata e as queimadas feitas ao volta da TI “são para fazer grandes pastos de fazendas e geração de manada”. O foco dos grileiros, pessoas que desmatam e se apossam de terras públicas, são áreas não destinadas, ou seja, regiões sob responsabilidade de governos estaduais ou federais que ainda não tiveram sua finalidade definida.
Por que isso importa
- Progresso do desmatamento no sul do Amazonas tem ameaçado a sobrevivência dos Juma e de outros povos originários na região.
- Povos indígenas de recente contato, uma vez que o Juma, devem ser protegidos pelo Estado com ações específicas.
“Hoje a gente está passando ameaças que vêm do grileiro e do quinteiro. Naquele tempo que aconteceu o massacre era do sorveiro [pessoas que entravam na floresta para extrair sorva e seiva de árvores raras]”, explicou Mandeí Juma, vice-presidente da associação Jawara Pina, que representa seu povo. “A gente vem passando, sobrevivendo, desde o primórdio”, finalizou.
Ainda que o desmatamento na Amazônia tenha reduzido 30,63% entre agosto de 2023 e julho deste ano, a maior taxa de redução em 15 anos, os números seguem altos, com o sul do Amazonas se consolidando uma vez que a novidade fronteira do desmatamento. No ano pretérito, por exemplo, a cidade de Lábrea, que fica a pouco mais de 90 quilômetros da TI Juma, superou Altamira, no Pará, uma vez que a líder no ranking de municípios com maior dimensão desmatada no Brasil. Mesmo quando ocorrem fora dos limites do território Juma, os crimes ambientais afetam a sobrevivência dos povos originários, pois geram a escassez de manjar, com a fuga de animais, além de levar poluição a lugares sagrados.
“Cá na lugarejo tinha muitas araras-azuis, mas elas desapareceram. Talvez foi por motivo do calor, ou falta de manjar, ou a derrubada [de árvores] que afastou as araras. Não foi só arara, também os porcos-do-mato não aparecem mais, os peixes diminuíram, os nambu e os jacamim não se encontram mais, e as frutas estão produzindo em estação dissemelhante”, finalizou a cacica.
Invasores deixam rastros
Além do caminho pela floresta, também é provável chegar à TI Juma pelo rio Assuã, um afluente do rio Purus, em um trajeto de tapume de 40 minutos de navio. A facilidade de chegada ao território deixa os indígenas cercados e expostos a diversos perigos, uma vez que o próprio desmatamento e a possibilidade de confronto, verbal ou físico, com suas lideranças.
No trajeto que fazem pelo rio para chegar à TI, os Juma costumam observar suas margens, em procura de caça ou para registrar as clareiras que são abertas pelos madeireiros, que entram em áreas protegidas para roubar madeira. Em junho de 2024, quando a reportagem foi até a lugarejo, isso aconteceu. De longe, o grupo de tapume de cinco indígenas que estava no navio a motor viu sobras de árvores derrubadas em um lugar com marcas de pegadas. Encostaram a embarcação na margem e registraram o caso.
Equipes de monitoramento também já encontraram rastros de invasores no meio da floresta, uma vez que em uma procura que ocorreu em outubro deste ano, quando o grupo encontrou carcaças frescas de animais em um lugar no qual só indígenas podem caçar. Outro avistamento de invasores ocorreu às vésperas de uma sarau cultural, a Yrerua, a sarau do guerreiro, quando três caçadores Juma encontraram homens desconhecidos dentro da TI. Quando se deparam com invasores, eles se perguntam: “Quem são as pessoas que estão se aproximando? De onde são? Será que são da periferia das cidades? Ou são do campo?”.
Até o deslocamento entre a lugarejo e a cidade de Humaitá, onde os Juma compram roupas, víveres e remédios, tornou-se perigoso nos últimos anos. A sensação dos indígenas é que a qualquer momento alguém pode atear queimação nos carros que os transportam, com eles dentro ou fora dos veículos. Há uns anos, um caminhão repleto de farinha produzida na TI, que seria vendida na cidade, foi atacado com um tiro. As margens da estrada, antes tomadas pela floresta, hoje abrigam casas, fazendas e até uma igreja. Muitas construções estão em dimensão pública, que foi grilada.
“O quinteiro vai justamente desmatar tantos quilômetros, aí com certeza vai trazer problemas para o território do Juma, ele vai desmatando dentro, pode querer entrar dentro do território do Juma”, afirmou a vice-cacica Maytá Juma.
Para Mandeí, segmento da responsabilidade pelo progressão dos invasores é do governo de Jair Bolsonaro (PL). “O governo ordenou o desmatamento para atingir a terreno indígena, […] o governo pretérito deixou sobrevir essa situação que estamos sofrendo hoje”, afirmou. “Para cá de 2020, [a gente] está sendo prejudicado com a quentura e a chuva [dos rios] não encher uma vez que antigamente. Era tudo normal e agora está tudo mudado”, acrescentou.
Amazonas se transforma em mais um estado do agro
O progressão do desmatamento tem transformado as áreas de floresta em pastos para manada ou plantações de monocultura, paisagens já conhecidas em estados tomados pelo agronegócio. Até mesmo o trânsito na cidade de Humaitá mudou, com vários caminhões circulando pela cidade, em privativo durante a estação de seca. São eles que transportam, por exemplo, a soja a ser vendida em outros estados.
“A gente está tendo já um tanto que a gente encontra no Mato Grosso, que são áreas muito extensas [de desmatamento], de tamanho bastante significativo, e a gente está começando a ter esses mosaicos [no sul do Amazonas], tipo um desmatamento cá, outro cá, que vão começando a se juntar, a se aglutinar, formando esse mosaico de desmatamento em torno da [BR] 230”, explicou Newton Monteiro, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), em entrevista.
Eduardo Sanches, procurador da República no Amazonas, destaca que os territórios indígenas “são os últimos lugares que estão muito protegidos, graças à dedicação dos povos que vivem ali, que com as suas vidas protegem esses territórios”. Por representarem barreiras contra alguns interesses comerciais, os povos tradicionais acabam sendo escopo de “pressões”, por vezes não combatidas pelas autoridades, explicou.
Porquê um povo de recente contato, designação da Instalação Vernáculo dos Povos Indígenas (Funai) para povos indígenas que têm contato com não indígenas, mas mantêm fortalecidas suas formas de organização social e dinâmicas coletivas, os Juma têm recta a ações diferenciadas e específicas de proteção, manutenção da saúde e instrução por segmento do Estado. Entretanto, denunciam não receber suporte suficiente.
“Meu libido é ação da Funai, Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] e ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] para fazer a fiscalização para combater esses crimes ilegais tanto fora quanto dentro da suplente indígena”, afirmou Boreá. “Nós, indígenas, não temos poder de retirar os invasores usando força, já esses órgãos têm”, desabafou.
Em entrevista, Raimundo Parintintin, coordenador da Funai em Humaitá, afirmou que a instalação tem monitorado os territórios, mas reconheceu que o desmatamento segue cima. Para ele, muitas das ilegalidades que têm se aproximado dos territórios “foram construídas no Congresso Vernáculo”, o que demanda uma resposta do movimento indígena na política, “para dar uma freada nessa violação dos direitos dos nossos povos”. As leis elaboradas e aprovadas pela bancada do agronegócio atingem os povos indígenas, que acabam em uma zona de conflito com os pecuaristas e produtores de soja, que querem a invasão e a ocupação de terras.
Questionado, Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama, afirmou que o instituto tem trabalhado para sofrear o desmatamento por meio da emprego de embargos nos produtos, uma vez que mesocarpo e soja, provenientes de terras griladas. Porém, atualmente, não há servidores da pasta sediados em Humaitá, porque, em 2017, os prédios do Ibama e do ICMBio na cidade foram incendiados por garimpeiros.
Em junho, o presidente afirmou à Pública que “a prioridade é retomar esse escritório ainda esse ano [de 2024]”, mas até a publicação da reportagem isso ainda não ocorreu. “Eu não tenho incerteza: o que não virar terreno indígena ou unidade de conservação em qualquer momento vai perfazer sendo ocupado”, finalizou Agostinho.
Já o governador do Amazonas, Wilson Lima (União), indagado pela reportagem sobre o progressão do desmatamento em direção às terras dos povos originários, disse que “vai trabalhar para sofrear essas ilegalidades” em “qualquer dimensão que inclua desmatamento proibido”. Para os indígenas, entretanto, ele é omisso e não está investido em combater os crimes.
“Solitário vai permanecer onde?”
Uma preocupação das lideranças Juma é que a aproximação do desmatamento afete possíveis grupos isolados, que podem estar vivendo nas redondezas do território, de negócio com indícios encontrados pela Frente de Proteção Etnoambiental (FPE), da Funai, que trabalha com a proteção de indígenas isolados e de recente contato.
“A terreno Juma, tanto ao setentrião quanto ao sul, tem registro de grupos isolados, que se remetem aos grupos Juma, Catauxi, grupos Kagwahiva dessa região”, explicou à reportagem Daniel Cangussu, indigenista e servidor da FPE. A suspeita é que os grupos sejam compostos de parentes dos Juma, que teriam fugido em seguida os massacres.
“Aí uma vez que que vai permanecer? Solitário vai permanecer onde?”, questiona Mandeí.
As três lideranças do povo também são contrárias a outra prenúncio: um projeto de manejo florestal que procura permitir a exploração de madeira na Floresta Vernáculo (Flona) Balata-Tufari, que envolve segmento do território indígena. As lideranças denunciam que não teriam sido ouvidas no início do processo e negam a licença pelo receio de que ela afete os possíveis grupos isolados e assuste ainda mais os animais, uma vez que a anta e o mutum, além dos peixes e tracajás. Elas consideram que tanto a terreno indígena demarcada quanto a dimensão mantida pelo ICMBio são essenciais para a sobrevivência do povo Juma.
Para Cangussu, em vez de ser concedida ao manejo, segmento da Flona deveria ser reconhecida uma vez que terreno indígena, pois é nela que estão localizados, por exemplo, antigos cemitérios e aldeias, usados antes do massacre, quando as pessoas se dispersaram e os parentes saíram correndo. “O que foi demarcado uma vez que Juma hoje representa uma pequena parcela [do território ocupado por eles] durante um processo de refúgio”, afirmou o indigenista à Pública.
Jemima Costa, também servidora da FPE, explicou à reportagem que a Funai tem atuado para que “isso não seja legalizado, para que não haja um impacto, tanto com o território Juma quanto com os possíveis registros de isolados”.
A reportagem questionou o Serviço Florestal Brasílico (SFB) sobre a situação atual do projeto de licença, sobre os indícios de indígenas isolados na região e sobre as denúncias dos Juma de não terem sido ouvidos no início do processo, mas não recebeu retorno.
A história do povo Juma
As três irmãs, Boreá, Maytá e Mandeí, são as únicas sobreviventes do último massacre de seu povo que seguem vivas. O pai delas, Aruká Juma, o último varão que sobreviveu ao conflito de 1964, faleceu de covid-19 em fevereiro de 2021.
De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), o massacre foi liderado por um tratante, Orlando França, que, com verba arrecadado com outros comerciantes, organizou uma expedição para extrair sorva e castanha no território Juma. O prefeito da cidade de Tapauá, Daniel Albuquerque, foi indigitado por relatório do Recomendação Indigenista Pregador (Cimi) uma vez que um dos envolvidos, pois ele teria sobrevoado e localizado a lugarejo Juma escopo do massacre, o que ele negou à estação.
Ainda que envolvessem pessoas públicas, os assassinatos só foram denunciados oficialmente mais de 14 anos depois, em 1978, pelo Cimi. No ano seguinte, um dos integrantes do grupo afirmou em entrevista ao jornal Porantim que foram mortos mais de 60 indígenas. Posteriormente a denúncia, a Polícia Federalista foi até a região para investigar, mas ninguém foi punido.
Depois do conflito, as três mulheres se casaram com homens da etnia Uru-Eu-Wau-Wau, com quem tiveram filhos, uma vez que Puré Juma Uru Eu Wau Wau, responsável desta reportagem. Toda a sucessão Juma é formada hoje por seus filhos e netos, que pertencem às duas etnias e se autodenominam Juma e Uru-Eu-Wau-Wau. Residem na TI Juma sete famílias, que buscam preservar a sua terreno tradicional de origem cuidando dos castanhais e dos locais sagrados, uma vez que o idoso cemitério e as zonas de caça e pesca.
Na visitante à lugarejo, a reportagem pediu que as irmãs falassem um pouco sobre a história de seu povo, mas revisitar o ponto é difícil, e somente Maytá abordou o tema com detalhes.
“Esse dia, eu falo, só quem sabe [o que aconteceu] é o povo Juma, uma vez que é que foi esse ataque último, o que fizeram com o corpo do povo Juma… Não só o corpo, que foi… Eles mataram, eles, eu acho que… Tiraram o corpo tudinho, queimaram, e ninguém sabe onde foi o corpo que foi deixado. E, outrossim, eles queimaram coisas que eles usavam, o urucum mesmo, flecha, e tudinho as coisas que eles tinham. O grudar, eles queimaram tudinho. Mas isso ninguém sabe, sabe que foi um ataque que teve, mas não sabe o que fizeram com o corpo do Juma. É só nós que sabemos para poder recontar e o que fizeram também. Porquê eu falei, queimaram a maloquinha dele, queimaram a flecha dele, queimaram o grudar dele, queimaram tudo que eles tinham. O último massacre que a gente tem. E de sobrevivente era o meu pai e minhas irmãs, porque o pai dele foi baleado também, mas ele [Aruká] sobreviveu, e meu tio também sobreviveu [o tio faleceu anos depois]. Essas pessoas aí que sobreviveu, que vieram conduzir a gente, que depois criaram a gente e nasceu a gente. Isso a gente… É muito triste para a gente recontar essa história. Cada pessoa… Às vezes a gente não tem vontade de recontar, é triste a história que tem, mas o neto pode saber, o bisneto pode saber. E por isso eu falo hoje que eu tenho o recta de tutorar o meu território. E continuar defendendo o meu território, onde o povo Juma viveu. Muita gente não quer que o quinteiro desmate onde foi [a antiga aldeia], [e onde] tem cemitério também. A gente vem tentando continuar levando no dia a dia [o nosso] recta e a nossa luta”, explicou Maytá com lágrimas nos olhos.
Hoje, os Juma ainda sentem o traumatismo e o susto de um conflito uma vez que aquele sobrevir novamente se o desmatamento e a grilagem continuarem avançando ao sorte de sua terreno. Por que o sistema não tem mais zelo com um povo que foi vítima de uma tentativa de extermínio? Ainda que a etnia tenha sido quase extinta, seus filhos e netos continuarão a história e manterão vivas as tradições que sobrevivem a tantos conflitos.
Conheça o responsável
Puré Juma