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Ditadura: Vala de Perus e o pedido de desculpa do Estado por um “velório” de quase 40 anos - Mundo News
7 de Abril, 2025

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Ditadura: Vala de Perus e o pedido de desculpa do Estado por um “velório” de quase 40 anos

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Criada na ditadura, vala de Perus em SP teve cinco identificados desde 1990; outros 42 podem...

O engenheiro Gilberto Molina, 81, passou 34 anos devotado a localizar, exumar, identificar e sepultar dignamente o corpo do irmão, o estudante de química Flávio Roble Molina. O militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo) de 23 anos foi morto sob tortura no DOI-Codi de São Paulo em novembro de 1971.

Gilberto descobriu, ainda em 1981, que os sobras mortais de Flávio estavam entre as ossadas jogadas na vala clandestina de Perus, buraco criado pela ditadura no Cemitério Dom Bosco, em Perus, na zona setentrião de São Paulo. A teoria era usar o lugar para amontoar os “indesejados” do regime: os opositores enterrados com nomes falsos ou uma vez que indigentes, as vítimas do surto de meningite que assolou a cidade na dezena de 1970 e os assassinados pelos esquadrões da morte e pela polícia.

Desde a morte do irmão, o engenheiro diz ter pretérito pelo que labareda de “um velório que durou quase 40 anos”, o que incluiu um processo de identificação referto de idas e vindas que durou 15 anos. A vala clandestina foi ensejo oficialmente em 4 de setembro de 1990, durante a gestão municipal de Luiza Erundina. 

Por que isso importa

  • O reconhecimento do Estado é um passo fundamental para processos de reparação e para que se estabeleçam políticas que previnam violações de direitos por regimes autoritários.
  • No caso da vala de Perus, pode também pressionar os envolvidos a promover a identificação de até 42 desaparecidos políticos na ditadura.

Até o reconhecimento, Gilberto e a mãe, Maria Helena, passaram por momentos de tristeza e constrangimento. A idosa teve que ser submetida a sucessivas coletas de sangue, e um erro em um dos exames de DNA, realizado por um laboratório estrangeiro, rendeu à família o questionamento se os filhos seriam da mesma mãe. 

Já o engenheiro chegou a ser chamado para “reconhecer” sobras mortais no Instituto Oscar Freire, ligado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), onde foi apresentado a um esqueleto sobre uma mesa: “O legista virou-se para mim e perguntou ‘você acha que leste cá é seu irmão?´. Quando voltei para o Rio, cheguei em morada, sentei na leito e chorei. É por isso que eu digo que é um velório”, lamenta.

Somente em 2005, os sobras mortais do militante da Molipo foram identificados, depois amostras do material genético da vítima e da mãe terem sido analisadas pelo laboratório paulista Genomic, o mesmo que atuou em casos relacionados à ditadura chilena.

Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, entre as 1.049 ossadas localizadas na vala, 42 podem ser de desaparecidos políticos. Desde 1990, unicamente cinco ossadas foram identificadas: Dênis Casemiro (1991), Frederico Eduardo Mayr (1992), Flávio Roble Molina (2005), Dimas Antônio Casemiro (2018) e Aloísio Palhano Pedreira Ferreira (2018).

Outros quatro desaparecidos foram identificados depois a franqueza da vala, mas os sobras mortais foram exumados de covas comuns do cemitério. Foram os casos de Sônia Moraes Angel Jones (1991), Antônio Carlos Bicalho Lana (1991), Luiz José da Cunha (2006) e Miguel Sabat Nuet (2008).

Brasil reconhece violações na ditadura; 42 desaparecidos seguem sem identificação

Devido a negligências e atrasos na identificação de sobras mortais de vítimas que ainda podem estar na vala de Perus, a União aceitou, em 2024, uma conciliação judicial com o Ministério Público Federalista (MPF), que questiona a morosidade do processo desde 1999 e ajuizou uma ação social pública em 2009. O pedido de desculpas solene foi feito aos familiares de desaparecidos durante cerimônia pública realizada no dia 24 de março.

“O Estado brasílico reconhece as graves violações de direitos humanos perpetradas por agentes de segurança que resultaram no desaparecimento de brasileiras e brasileiros, conforme registrado no relatório final da Percentagem Pátrio da Verdade. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em nome do Estado brasílico, pede desculpas aos familiares dos desaparecidos políticos durante a ditadura militar brasileira, iniciada em 1964, e à sociedade brasileira pela negligência, entre 1990 e 2014, na meio dos trabalhos de identificação das ossadas encontradas na vala clandestina de Perus, localizada no cemitério Dom Bosco”, leu a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo. 

A procuradora regional da República e presidente da Percentagem Privativo sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), Eugênia Augusta Gonzaga, disse possuir a expectativa de novas identificações pelo Núcleo de Antropologia e Arqueologia Judicial (Caaf), da Universidade Federalista de São Paulo (Unifesp), cuja geração, em 2014, também foi fruto da ação do MPF. “Há dois ou três casos com subida verosimilhança”, disse em entrevista à Agência Pública

Gonzaga é também uma das autoras da ação social do MPF que visava responsabilizar a União Federalista, o estado e o município de São Paulo, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Federalista de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e quatro servidores públicos por negligência na meio dos trabalhos de identificação dos sobras mortais na vala de Perus. A ação incluía um pedido para que os réus se desculpassem com os familiares das vítimas.

Segundo o procurador regional da República Marlon Alberto Weichert, também responsável da ação do MPF, o pedido de desculpas “é um dos elementos essenciais de praticamente toda a sentença da Golpe Interamericana de Direitos Humanos. Toda sentença do tipo tem norma de que o Estado faça um ato de reconhecimento de responsabilidade”.

O procurador esclarece que esse tipo de medida não se confunde com o perdão, mas simboliza que o Estado reconhece “o sofrimento das vítimas e quer provar coletivamente que aquilo foi um erro no pretérito, o que aponta para a teoria da não repetição”. 

Ao ser questionada, a ministra Macaé Evaristo apontou dois caminhos para a não repetição: a tipificação do transgressão de desaparecimento forçado, proposta pela percentagem de reforma do Código Penal, o que facilitaria a punição de agentes públicos que contribuem para a ruína e ocultação de corpos de vítimas de violência, e a urgência de geração de um banco vernáculo de DNA de familiares de vítimas de desaparecimento, processo que pode ser facilitado pela carteira vernáculo de identidade. 

A ministra anunciou avanços em três processos de memória com recursos obtidos pela pasta para a implementação dos memoriais na Vivenda da Morte, em Petrópolis (RJ), e na antiga auditoria militar de São Paulo, e o esteio para os trabalhos de arqueologia pública na sede do velho Doi-Codi da capital paulista. 

Ação levou à manutenção de pesquisas e novas identificações

A ação do MPF resultou em uma série de medidas relacionadas à identificação das ossadas. Em outubro de 2017, por exemplo, uma conciliação firmada no Tribunal Regional Federalista da 3ª Região (TRF3), em São Paulo, garantiu financeiramente os trabalhos do Caaf e dois desaparecidos foram identificados. Entretanto, durante o governo de Jair Bolsonaro, que dizia que “quem procura osso é cachorro”, os trabalhos pararam por falta de recursos. 

Com a posse de Lula, em 2023, a retomada dos trabalhos do Caaf e a recomposição da CEMDP, a turma de conciliação do TRF3 voltou a discutir a questão, dos quais concordância foi aceito pelo MPF e pela Advocacia-Universal da União (AGU). O governo Tarcísio de Freitas, entretanto, abandonou o acordo. Segundo o mandatário, não haveria razão para o ato público do último dia 24 de março, data definida pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma vez que Dia Internacional pelo Recta à Verdade sobre as Violações dos Direitos Humanos e pela Distinção das Vítimas.

Na cerimônia pública, estiveram presentes familiares de mortos e desaparecidos políticos, sobreviventes da repressão política, autoridades do governo federalista e dos poderes legislativos federalista, estadual e municipal, juízes federais e membros do MPF, moradores de Perus, inclusive o velho gestor do cemitério Antônio Eustáquio, que criticou a privatização dos cemitérios paulistanos. O prefeito Ricardo Nunes, coligado de Tarcísio e de Bolsonaro, mandou representantes à cerimônia.

Vala obscura: nomes falsos, contexto político e nove anos de muita espera

O Cemitério Dom Bosco, em Perus, a 30 km do núcleo da cidade, foi inaugurado em 1971 na gestão de Paulo Maluf, nomeado prefeito pela ditadura militar. O uso do lugar para sepultar as vítimas do regime era divulgado dos familiares de mortos e desaparecidos desde os anos 1970. As primeiras sepulturas foram localizadas e os corpos começaram a ser resgatados ainda no início dos anos 1980. 

Em 1981, Gilberto Molina soube que o irmão estava enterrado em Perus e que havia usado na clandestinidade o nome falso Álvaro Lopes Peralta. Fazia sentido para a família: “Álvaro era o nome de papai, Lopes era um sobrenome de família que não usávamos e Peralta era um sobrenome [de Flávio] de rapaz”. 

“Vim cá em Perus e conheci o Antônio Eustáquio, que descobriu nos registros onde havia sido sepultado Álvaro Peralta e me disse que os sobras mortais foram exumados em 1976 e levados de lá para a ‘vala generalidade’. Eu pedi e ele me mostrou onde era a vala e que a abrisse. Ele me mostrou um fêmur, depois um crânio, os sacos plásticos e a minha perna começou a bambear, e pedi para parar, pois era o bastante”, lembra. 

O engenheiro compartilhou a informação com outros familiares de mortos e desaparecidos, mas o entendimento foi que, com Paulo Maluf governador, não havia clima político para a franqueza da vala. Posteriormente o jornalista Caco Barcellos ter tomado conhecimento do lugar, pesquisando documentos para o livro Rota 66, no final dos anos 1980, e com Luiza Erundina uma vez que prefeita de São Paulo, se criaram as condições políticas para terebrar a vala, anunciar a invenção e iniciar a identificação dos sobras mortais.

Iara Xavier Pereira, que teve os dois irmãos, Iuri e Alex, e o marido, Arnaldo Cardoso Rocha, assassinados pela repressão entre 1972 e 1973, resgatou os corpos nos anos 1980. Antes, Iara já havia ajudado Suzana Lisboa a encontrar os sobras mortais de seu marido, Luiz Eurico Tejera Lisboa, o primeiro perdido que teve o corpo localizado no Brasil, em 1979. 

Iara e Suzana localizaram o registro do sepultamento de Nelson B. nos livros do cemitério e a segunda intuiu que o B seria de Bueno, uma das identidades usadas por ele para viver na clandestinidade. 

O registro em Perus indicava o lugar da morte: uma pensão no núcleo de São Paulo, e Suzana foi até lá com uma foto do companheiro. “Logo que a gente se apresentou, mostrei a foto dele e todo mundo reconheceu que aquele era o Nelson Bueno”, disse Suzana à Percentagem Estadual da Verdade de São Paulo, em 2012. Posteriormente uma ação judicial, os sobras mortais de Luiz Eurico foram recuperados e sepultados em Porto Satisfeito em 1982.

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