O julgamento dos assassinos de Marielle Franco pelo olhar de Monica Benicio
13 min read“Eles vão ressuscitar a Marielle pra depois matar de novo”, desabafou Monica Benicio, viúva da vereadora Marielle Franco, oito dias antes do início do júri que condenou Ronnie Lessa e Élcio Queiroz a 78 e 59 anos de prisão, respectivamente, no dia 31 de outubro. Por um segundo, na sala reservada às testemunhas, na quarta-feira, 30, início do julgamento, ela quase levou ao pé da letra a própria profecia. Ao abrirem a porta da sala onde estavam para tranquilizar o calor, ouviu repetir a voz de Marielle.
“Fernandinhaaaa, minha amiga!”
Monica paralisou. Agatha Arnaus, viúva do motorista Anderson Gomes, perguntou se ela estava muito, e a lembrou dos áudios do documentário sobre o homicídio de seus companheiros, que seriam reproduzidos pelo Ministério Público (MP) – as duas viraram amigas depois do atentado, unidas pela compreensão da mesma dor. “Ou é isso, ou a Marielle acabou passar gritando cá no galeria”, disse Monica.
Fernanda Chaves, amiga e ex-assessora de Marielle, estava com a vereadora no sege e sobreviveu ao atentado. Foi a primeira a depor e falou por quase uma hora e meia, seguida por Marinete Silva, mãe da vereadora. Uma das estratégias da delação para convencer os jurados a dar a maior pena aos assassinos confessos, Lessa e Queiroz, era emocioná-los. Relembrar o lado humano das vítimas – a mãe, a filha, a esposa, o marido, o pai – e não unicamente o símbolo, a mulher política.
Por isso, Monica também teria de depor – seria a terceira na fileira. Não só falar, mas reviver a dor daquele 14 de março de 2018. Lembrar da exiguidade do grande paixão da sua vida. Por seis anos e sete meses, cobrou das autoridades uma investigação séria, rodou o mundo cobrando respostas, em procura de justiça – e em fuga do próprio sofrimento.
As últimas semanas não foram diferentes. Monica se jogou na campanha vitoriosa à reeleição da Câmara dos Vereadores e relegou os pensamentos sobre o júri. Até que não deu mais.
Na semana anterior ao início do julgamento, pediu retraimento médico para cuidar da saúde mental. Marcou terapia três vezes nos últimos dez dias, consultou sua psiquiatra e ajustou os remédios de emergência. Ignorou os pedidos de entrevista e deixou quase 2 milénio mensagens sem resposta no celular. Não tinha condições emocionais para mourejar com o que representaria o júri. E simplesmente não conseguia saber resposta para a principal pergunta: porquê se sentia na iminência da pena dos executores de sua esposa?
Acordou na quarta, depois de uma hora de sono, sem vontade de ir para o primeiro evento do dia, o Amanhecer por Marielle e Anderson, marcado para às 7 da manhã, em frente ao Tribunal de Justiça (TJ) do Rio. Na noite anterior, havia questionado uma amiga sobre comparecer ou não ao evento. “Politicamente é bom. Mas você é um ser humano. E humanamente eu acho péssimo. Você sabe porquê funciona, no término é você que precisa consolar as pessoas”, disse a amiga.
Seguiu o juízo e não compareceu. Em vez dos pagodes que costuma colocar no início do dia, ligou a playlist “Marielle e Monica”, que preparou para embalar a leitura de seu livro, lançado em abril deste ano. Lá estão as músicas que mais lembram o paixão das duas. Uma delas é Prece, da Margem Mais Formosa da Cidade. Em uma de suas viagens a São Paulo, em 2017, Marielle enviou a ela um áudio cantando trechos da música.
Estava dentro dos planos do MP usar esse áudio durante o testemunho de Monica. Não precisou de mídia para emocionar o júri e a plateia. Era impossível não sentir a dor de Monica. Com uma pulseira de Marielle na mão, Monica precisou de longas pausas e respiros para sofrear o pranto e responder às perguntas dos promotores.
“Marielle era a amiga que você podia vincular de madrugada porque sabia que ela ia atender, parar o que estivesse fazendo, transpor de moradia de pijama, se fosse necessário, para ajudar. Tinha muita vontade e ao mesmo tempo era muito afetuosa. […] Era uma pessoa com um poder de empatia que nunca vi. A Marielle lia a vida e a dor das pessoas com uma munificência, uma solidariedade muito formosa”, contou.
Nenhuma pergunta foi tão difícil quanto relatar a falta que Marielle ainda faz na vida dela. Monica passou dois minutos sem manifestar uma vocábulo, tentando se reconstituir do pranto.
“Eu lembro do primeiro dia em que vi a Marielle, minha vida nunca mais foi a mesma. […] Eu fui fazer pré-vestibular porque a Marielle me incentivou. Quando eu passei no vestibular, ela foi fazer a matrícula comigo. Quando eu passei no mestrado, ela foi fazer a matrícula comigo. Eu larguei um ocupação bom em um escritório de arquitetura porque eu queria fazer mestrado e a Marielle me incentivou […]. Eu não consigo manifestar em palavras qual o tamanho da falta. Mas essa dor da exiguidade que se apresenta diariamente, ela cobre tudo, cobre todos os detalhes e, por mais que a gente aprenda a ressignificar isso, essa dor da exiguidade está sempre ali.”
Foram pouco mais de 30 minutos de testemunho. Monica saiu da sala de audiência e demorou para retornar ao Tribunal do Júri, desta vez junto à plateia. Ainda assim, quando voltou, ainda estava visivelmente emocionada – principalmente pelo testemunho sofrido de Agatha. Com a morte do marido, além da saudade, a viúva de Anderson precisou mourejar sozinha com o diagnóstico de onfalocele, uma doença de má-formação do tripa, e autismo do pequeno Arthur, rebento dos dois.
“O Arthur estava vivendo com uma mãe que estava destruída, ele não andava, não falava. Ele tem um delongado de desenvolvimento de modo universal. Mas o Anderson não teve a oportunidade de estar com o Arthur num momento de pai e rebento mais tranquilo”, disse Agatha.
Posteriormente os depoimentos, no galeria do Tribunal do Júri, as famílias se consolaram. Entre todos os abraços, nenhum comoveu mais a viúva do que o de Luyara, filha de Marielle. As duas se conhecem desde que a pequena tinha 5 anos.
Houve um respiro, enquanto era a vez de policiais civis e federais prestarem seus testemunhos. Mais calma, Monica usou de uma tática que executa com maestria: mascarar a dor com piadas e humor.
Os depoimentos dos réus
No início da noite, Ronnie Lessa foi escolhido porquê o primeiro dos réus a ser interrogado, por videoconferência. Em tom insensível, porquê quem conta do dia em que saiu para comprar pão, Lessa narrou com detalhes técnicos sobre porquê posicionou a arma para os disparos. E elogiou o parceiro Élcio: “Missão do Élcio era triste e fez muito”.
Explicou, ainda, porquê funciona a rajada automática da MP5, arma escolhida por ele para o transgressão. “O tempo que o senhor segura o gatilho vai permanecer saindo a munição, se segurar até esgotar do carregador vai…”
Na tentativa de convencer os jurados a livrá-lo dos agravantes de dolo (com intenção de matar) pela morte de Anderson e da tentativa de homicídio de Fernanda, que poderiam aumentar sua pena, Lessa argumentou que queria matar só Marielle. Mas ele mesmo se complicou. “Tentei concentrar ao sumo no meta, que era a Marielle. Mas sabia que a arma [uma submetralhadora MP5, de calibre 9 milímetros] não era adequada para isso. Se fosse um revólver, só a vereadora teria morrido.”
Os promotores não deram espaço para as desculpas de Lessa. Questionaram por que, portanto, o executor havia escolhido uma metralhadora automática, com munição extremamente perfurante (9 milímetros).
“O senhor escolheu usar uma MP5, o senhor escolheu usar o calibre 9 milímetros, o senhor escolheu usar no modo full auto, um acionamento do gatilho até esgotar o carregador, o senhor tinha visão do que acontecia dentro do sege, porque o senhor estava emparelhado e o vidro foi estilhaçado com os disparos, e mesmo assim o senhor sustenta que só tinha intenção de matar a Marielle? Que com o Anderson, o senhor e o Élcio só assumiram o risco. E que com a Fernanda nem sequer isso. É isso que o senhor nos quer fazer crer?” Lessa argumentou que a arma só funciona até esgotar “se houver premência” e que unicamente um acionamento já dispararia muitos tiros.
“Mas o senhor sabia disso?” “Sabia”, disse Lessa.
A cena daquela noite só piorou ao longo do testemunho. O patrono público Fabio Querido retomou a fala de Lessa sobre se concentrar em Marielle.
— “O senhor disse que tentou concentrar ao sumo no meta. O senhor tentou focar na cabeça da Marielle?”
— “Doutor… o homicídio… é… você vai escolher peito ou cabeça.”
— “Focou na cabeça dela?”
— “Foquei.”
Ao lado de amigos, Monica sucumbiu à frieza de Lessa, à visualização da cena. E voltou, mais uma vez, para 2018. Quando uma amiga perguntou se ela queria um pouco, murmurou que “queria matar Ronnie Lessa”. “Eu chorei tanto quanto no dia 15 de março”, relembrou no dia seguinte.
Duas horas e meia depois, lá pelas 21h, seria a vez de Queiroz. Monica se retirou da plateia e ficou nos corredores, sentada ao lado de amigos. Não ouviu uma vocábulo sequer do testemunho de Élcio. “Ele, eu já vi falando as mesmas coisas no outro testemunho. E eu já ouvi, cumpri minha missão ouvindo o Lessa, tá ótimo.”
Lá dentro, o MP pressionava Élcio sobre os motivos de não ter desistido da empreitada – ou de demover Lessa do projecto. Em testemunho, o ex-PM chegou a declarar que pensou em desistir, enquanto perseguia o sege de Anderson. Segundo ele, no término de 2017, Lessa contou que outro motorista – Maxwell Simões Corrêa, recluso por envolvimento no homicídio de Marielle e Anderson – havia voltado detrás, o que havia gerado raiva em Ronnie Lessa. E que, de alguma forma, colocaria sua vida em risco se não concluísse a empreitada criminosa.
— “Quando o senhor soube do refugo, suposto refugo do Maxwell?”, questionou o promotor.
— “No ano novo”, respondeu Élcio.
— “O Maxwell tava vivo?”
Élcio pareceu não entender a motivação da pergunta. Balbuciou que sim.
— “E ele ainda está vivo?”
— “Sim.”
— “Sem mais.”
Passava da meia-noite, e a expectativa era que o júri rolasse madrugada adentro, até transpor a sentença final. Mas a juíza Lúcia Glioche, do 4º Tribunal do Júri, consultou os jurados e decidiu suspender a sessão até às oito da manhã.
O dia da sentença
Monica chegou ao TJ ansiosa, falando sem parar. Quando perguntei se havia tomado qualquer remédio para se manter ligada daquele jeito, ela negou. “Ainda vou tomar meu alprazolam, por isso tô assim.” Os remédios são receitados pela psiquiatra da vereadora.
Seria um dia relativamente mais ligeiro aos familiares, com a expectativa de, enfim, ver os réus condenados – e sem passarem pelos depoimentos. Aquele era o momento de delação e resguardo defenderem suas teses. A primeira queria convencer o júri a culpá-los pela emboscada, motivo torpe, interceptação (por conta do uso de veículo clonado), homicídio culposo de Marielle e Anderson, e tentativa de homicídio de Fernanda. Já a resguardo dos réus queria tranquilizar a pena.
Mas não foi tão fácil assim. De pé, próxima à porta de ingressão da plateia do júri, Monica assiste à exibição do vídeo que reproduz o áudio enviado por Fernanda Chaves ao marido, logo depois transpor, desesperada, do sege baleado. “Reza por mim, reza pela Marielle, reza pelo Anderson”, dizia Fernandinha. “Esse áudio dela é muito possante”, sussurra Monica, com os olhos marejados.
Na secção final da sustentação da delação, duas horas e meia depois o início da sessão, o clima de pranto tomou a sala. No telão, os advogados e defensores passaram uma série de fotos. Agatha prenha, ao lado de Anderson, os dois com o rebento Arthur. “Pai zeloso. O pai que essa moçoilo perdeu… Outra foto de Anderson com o rebento, felizes, essa vai permanecer só na memorial”, narrava a defensora Daniele Silva.
As primeiras fotos de Marielle mostravam a vida dela ao lado dos pais, da mana e da filha. “Marielle Francisco com sua família”, seguia a defensora. Ao longo do julgamento, a delação fez questão de lembrar e mencionar o nome de registro da vereadora, Marielle Francisco da Silva, para lembrar aos jurados do lado humano, da pessoa geral assassinada.
Quando começaram as fotos de Marielle e Monica, a defensora fez questão de enfatizar sobre o paixão das duas. “Ali o paixão de duas pessoas, interrompido violentamente.” Monica desatou a chorar mais uma vez. A sensação na sala era de que os corpos de Anderson e Marielle estavam sendo velados naquele momento. “Marielle presente. Hoje e sempre”, finalizou a defensora.
As argumentações dos dois advogados de resguardo tomaram pouco mais de uma hora e a sessão foi suspensa para almoço. Os trâmites de réplica e tréplica de resguardo e delação demoraram pouco mais de duas horas. E por volta de cinco da tarde, o júri se reuniu na sala secreta para sentenciar a sentença final.
Nos corredores, os jornalistas disputavam o espaço. Enquanto esperava, Monica dividia sua atenção entre um texto para ser publicado depois o veredito do júri, e seu assessor, Luciano Victorino, que corria de um lado para o outro em procura de qualquer novidade informação.
Lá pelas seis da tarde, chegou a informação de que o júri já havia tomado sua decisão. Monica e os outros familiares se sentaram na primeira fileira, porquê haviam feito durante quase todo o julgamento. A defensora Daniele Silva voltou ao plenário com um sorriso largo, o punho levantado e fechado: o júri havia aceitado todas as acusações. Promotores, advogados e defensores se abraçaram.
Faltavam ainda a descrição dos anos de prisão e a leitura final da sentença. Mas a juíza só entraria quando nenhum dos presentes na plateia estivesse com os celulares ligados. Os seguranças pediam desesperadamente que todos, inclusive os jornalistas, acatassem o pedido.
Houve um momento de tensão, quando uma mulher desconhecida insistia em segurar o aparelho. O segurança apontou para ela e informou que “ela só vai entrar quando essa cá vigilar o celular”. Nervosas, Marinete e Monica esbravejaram contra a mulher, que, enfim, deixou o celular de lado.
A juíza Lúcia Glioche iniciou a leitura mencionando o júri porquê um ato democrático, “democracia esta que Marielle Franco defendia”. Monica mantinha o rosto entre as mãos, chorando. “A sentença que será lida, agora, talvez não traga aquilo que se espera da Justiça. Talvez justiça que tanto se falou cá fosse que o dia de hoje nunca tivesse ocorrido”, disse ela, se referindo à frase que Monica usou durante seu testemunho.
Ao relembrar, durante a leitura, que as vítimas também são os familiares, a juíza mencionou todos nominalmente, mas se esqueceu de seu Antônio, pai de Marielle. Anielle e Luyara o consolaram. Gafes à secção, a magistrada foi enfática ao manifestar que a Justiça, embora lenta e nequice, “alcança até aqueles que, porquê os réus, acreditam que nunca serão responsabilizados”.
Àquela profundidade, Monica já não escutava uma vocábulo. Era incapaz de ouvir qualquer coisa em meio ao pranto e ao refrigério de ouvir, depois 2.422 dias desde o homicídio de Marielle e Anderson, a pena final dos executores.
“Por isso, fica cá para os acusados presentes”, dizia a juíza, enquanto apontava para o tablet, por onde via os dois réus. “E serve para os vários Ronnies e vários Élcios que existem por aí, soltos, a seguinte mensagem: a Justiça por vezes é lenta, é cega, é burra, é injusta, é errada, é torta, mas ela chega.”
Ronnie Lessa foi sentenciado a 78 anos e 9 meses de reclusão, enquanto Élcio pegou 59 anos de prisão e 8 meses.
Seu Antônio teve uma crise de pranto – um pranto guardado por mais de seis anos. “Eu tenho o recta de chorar, eu tenho o recta”, gritava aos prantos. Monica se dividia entre abraços, lágrimas e sorrisos.
Na hora de caminharem até o hall do caminhar, os familiares deram as mãos e foram juntos até a prelo. Mais tarde, num restaurante próximo a sua moradia, Monica contou, emocionada, que foi Luyara quem a chamou e cruzou seu braço com o dela e relembrou do oração da pequena. “Ela puxou a fala, foi a primeira a falar [Marinete havia respondido brevemente a pergunta de um jornalista]. Eu nunca tinha visto ela retrair uma fala assim. Falei pra ela ‘minha moçoila cresceu!!!’, aí ela chorou.”
Há rumores de que o Supremo Tribunal Federal (STF) quer julgar os mandantes, Chiquinho e Domingos Brazão, ainda leste ano. Seria o refrigério final para os familiares. “Já pensou se meu 2018 termina em 2024?”, brinda Monica.