Quantcast
Histórias de liberdade: banco de dados resgata cartas de libertação na Bahia - Mundo News
19 de Dezembro, 2024

Mundo News

Seu Mundo! Suas Notícias!

Histórias de liberdade: banco de dados resgata cartas de libertação na Bahia

7 min read
Levantamento mostra como a liberdade e a escravidão eram negociadas durante o Brasil Colônia e Império...

A investigação foi feita com base do Pulitzer Center

Antônio, proveniente da costa da África, foi escravizado em Alagoas no início do século 17 e obteve sua liberdade por 350 mil-réis. No entanto, mesmo posteriormente seis anos de libertação, seu velho senhor, Joaquim do Ó, tentou voltar a escravizá-lo repetidamente. Para proteger sua liberdade, Antônio registrou sua missiva de libertação em um tabelionato distante do seu ex-senhor, em Salvador.

Em outro caso, Joaquim teve sua libertação escrita em 1825, quando tinha sete anos. Mas a missiva só foi registrada seis anos depois e, mesmo assim, seu velho senhor impôs a quesito de que ele continuasse porquê seu acompanhante e fosse submetido a castigos domésticos. 

Esses são unicamente alguns dos mais de cinco milénio casos documentados no banco de dados de cartas de libertação (“Manumission Papers Database”) que o historiador e pesquisador freelancer Urano Andrade desenvolve há mais de uma dezena. Digitalizando registros históricos armazenados no Registo Público do Estado da Bahia, Andrade está construindo uma base de dados sobre a história da escravidão e da liberdade no estado, cuja capital, Salvador, chegou a ser o maior porto de comercialização de escravizados das Américas. 

O projeto começou em 2012, em parceria com a professora Kristin Mann, da Universidade Emory, nos Estados Unidos. Ela procurou o pesquisador para mapear escravizados e ex-escravizados de um negociante baiano que  não listou descendentes ou parentes em seu inventário, mas deixou bens para as pessoas escravizadas – tema do estudo de Kristin.

A partir dessa demanda, Andrade expandiu o trabalho para incluir cartas de libertação registradas nos livros de notas do Registo Público do Estado da Bahia, “onde se registram as compras e vendas de imóveis e diversas outras demandas da sociedade”, explica. Com financiamento parcial da Livraria Britânica, foram digitalizadas 325 milénio imagens de documentos porquê segmento do Endangered Archives Programme, projeto focado na preservação e transcrição de arquivos importantes e vulneráveis. 

“Essa digitalização dos livros de notas realizada por mim com financiamento da Livraria Britânica possibilitou que mais pessoas tenham chegada [às cartas de alforria]. O banco de dados estruturado, com cartas de libertação de 1800 a 1850, foi publicado no Journal of Slavery and Data Preservation Dataverse, com chegada público disponível no Harvard Dataverse (repositório de dados de pesquisas acadêmicas mantido pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos). Já as imagens digitalizadas do Registo Público do Estado da Bahia, com os registros desde 1664, podem ser consultadas no site do Endangered Archives Programme, mantido pela Livraria Britânica

O projeto de Andrade oferece um olhar sobre a complicação das relações entre escravizados, libertos e senhores, assim porquê as estratégias para invadir e preservar a liberdade. Ao increver os documentos, o pesquisador descobriu que as cartas eram obtidas frequentemente em troca de moeda, serviços ou sob condições específicas impostas pelos senhores. “A missiva de libertação era negociada entre o escravizado e o seu senhor”, diz. “Não é zero de perdão, muitas das cartas são condicionais, e o banco de dados  formula isso”, explica.

Andrade cita algumas histórias registradas nesses documentos, porquê o de uma escravizada obrigada a cozinhar para sua antiga senhora em visitas ocasionais, mesmo posteriormente a liberdade. Em outro caso,  uma mulher resgatou sua própria filha da escravidão, comprando-a porquê escrava por 190 mil- réis, e, em seguida, a libertou. Anacleta Maria do Rosário, proveniente da Costa da Mina, foi escravizada na Bahia e separada de sua filha, que ficou na África. Ao prometer sua liberdade, Anacleta soube do paradeiro de sua filha, que também foi escravizada. Posteriormente comprá-la, ela deveria grafar a missiva de libertação e, por não ser alfabetizada, primeiro procurou alguém para redigir o documento de sua filha, batizada com o nome simbólico de Felicidade.

O historiador diz que, durante qualquer tempo havia uma traço muito tênue entre a escravidão e a liberdade, já que a liberdade garantida na missiva de libertação poderia ser revertida. “Há diversos casos de reescravização [de alforriados]. Aí a pessoa escravizada registra [a carta] em tabelionato de notas para ter a segurança de que, se perder aquela missiva, ela pode requerer uma transcrição”, conta.

Ainda no século 17, muito antes da extermínio, que ocorreu no século 19,  o pesquisador diz que já havia registros de pedidos de libertação. Ele lembra que, antes da Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, outras leis criaram dispositivos para libertação de pessoas escravizadas, entre elas a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850, e a Lei do Ventre Livre, em 1871. A primeira proibiu o tráfico transatlântico de escravizados para o Brasil, enquanto a segunda concedia liberdade a filhos de mulheres escravizadas, com a quesito de que as crianças permanecessem sob a tutela dos senhores de suas mães até os oito anos, podendo ser entregues ao Estado (que concedia uma indenização ao escravista) ou continuar a trabalhar para o senhor até os 21 anos.

Outra estratégia para prometer a liberdade conquistada era, segundo o pesquisador, a construção de redes de base entre escravizados na movimentação entre o Brasil e a costa da África. Durante a travessia, eles estabeleciam conexões de base e troca de informações sobre parentes libertos e escravizados separados entre os continentes. 

Uma das evidências da existência dessas redes é o compartilhamento das testemunhas em cartas de libertação. “Havia sempre as mesmas testemunhas que iam assinar essas cartas, o mesmo procurador”, explica o pesquisador. 

Aliás, os escravizados também contavam com base das sociedades abolicionistas,  ajudavam a pleitear a liberdade na Justiça, seja com pagamento de alforrias, ou patrocínio de ações judiciais, ou, ainda, sequestrando escravos de seus senhores. Um exemplo foi a Sociedade Dois de julho, formada por estudantes baianos que cursavam recta em Pernambuco.

Resgate histórico

O banco de dados organiza as cartas de libertação em uma planilha, incluindo detalhes do escravizador, informações da pessoa escravizada, além das condições impostas para a libertação e informações adicionais. A leitura e a transcrição dos documentos são um duelo técnico por si só, devido à escrita arcaica e muitas vezes ilegível dos escrivães da era. Andrade recorre a técnicas paleográficas (estudo da escrita antiga) para interpretar esses textos e organizá-los em um formato alcançável. Ele também usa ferramentas modernas de digitalização, porquê o reconhecimento de caracteres (OCR), para açodar o processo.

Embora financiado por uma universidade estrangeira, Andrade diz que o base para projetos que visam à manutenção de arquivos vem aumentando no Brasil. Ele lembra que, recentemente, um edital de R$ 250 milhões para recuperação e preservação de acervos foi lançado pelo Ministério da Cultura e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

O resgate histórico que o banco de cartas de libertação promove auxilia estudos genealógicos e cruzamentos de dados, permitindo reconstruir trajetórias de escravizados e seus descendentes. Segundo Andrade, os dados podem ser cruzados com outros bancos e plataformas online (porquê o FamilySearch ou o SlaveVoyages) – ferramentas que foram utilizadas nos levantamentos do Projeto Escravizadores da Sucursal Pública –, o que possibilita um mapeamento vasto, desde a chegada das pessoas escravizadas ao Brasil, o momento de libertação e até mesmo seus testamentos e retorno à África.

Na Pública, contamos sobre as dificuldades de mapear a genealogia de pessoas negras, que passam por relatos de transmigração, chegada aos documentos e apagamento de memórias. O pesquisador acredita que isso acontece porque “na construção de uma história documental é óbvio que pessoas mais abastadas deixam mais registros, pois elas compram mais, vendem mais, inventariam seus bens. Elas têm um controle documental sobre aquilo. Pessoas mais simples, mais humildes, porquê libertos e escravizados, poucos registros têm”, conclui.

O pesquisador diz que o banco de dados ainda está sendo atualizado e que, futuramente, ele deve se tornar colaborativo, ou seja, será provável somar informações de outros estados. “A gente pretende fazer um padrão porquê o do SlaveVoyages, que é um banco de dados sobre o tráfico transatlântico de escravos. Queremos reunir cartas de todo o Brasil, e os pesquisadores que tiverem bancos de dados locais irem colaborando e preenchendo com o nosso banco de dados. E aí a gente vai ter uma dimensão de Brasil.”

A expansão do trabalho é, para o pesquisador, uma forma de “salvar vidas do pretérito e do presente”. Ele acredita que “ao publicizar as cartas de libertação, o trabalho traz à tona histórias de famílias”. “Essas pessoas não são pessoas de luto, são Felicidades, são Marias, são Joanas, são Joaquins e Pedros, que tratam da sua história, vivenciam a sua história. E se essa documentação não fosse preservada, nunca a gente poderia recontar essas histórias.”

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Copyright © All rights reserved. | Newsphere by AF themes.