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Crimes na ditadura: entenda por que indígenas reivindicam uma nova Comissão da Verdade - Mundo News
26 de Agosto, 2025

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Crimes na ditadura: entenda por que indígenas reivindicam uma nova Comissão da Verdade

13 min read
Na Comissão de 2014, indígenas não foram priorizados, mesmo com estimativa de mais de 8 mil...

Quando a Percentagem Pátrio da Verdade (CNV) apresentou seu relatório final, em dezembro de 2014, a lista solene de mortos e desaparecidos políticos incluía 434 pessoas. Nenhuma delas era indígena. Não porque a ditadura militar tenha poupado os povos originários – pelo contrário, a própria CNV estimou que alguns milhares foram mortos no período. E, sim, porque essa população não era o foco do colegiado, que abordou a temática de maneira secundária, só em seguida pressão da sociedade social. 

Em seu caderno temático devotado aos povos indígenas, a Percentagem contabilizou ao menos 8.350 mortes por ação direta ou por inação de agentes do Estado, quase 20 vezes mais do que os considerados mortos e desaparecidos políticos. O número, reconheceu a CNV, está muito aquém da verdade, já que se baseou em investigações sobre exclusivamente dez povos, dentre os mais de 300 que o Brasil tem mapeados atualmente. 

Por que isso importa

  • A geração da Percentagem Pátrio Indígena da Verdade é um importante instrumento para mostrar à opinião pública as ações violentas e arbitrárias do regime militar contra os povos originários e substanciar a urgência das demarcações de terras e o desrespeito imposto pelo Marco Temporal.

Para colocar o tema no meio do debate, identificar e evitar a repetição dessas violações – acentuadas na ditadura, mas presentes desde a colonização, e mesmo em seguida a redemocratização –, os indígenas querem a sua própria Percentagem da Verdade.

“Remoções forçadas, perseguição, intimidação, cárcere privado, contaminação por doenças porquê sarampo e varíola, proibição de falar a língua, tortura, homicídio, estupro e sequestro de crianças criadas pelos próprios invasores”. A enumeração feita por Paulino Montejo, assessor político da Pronunciação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), representa exclusivamente uma parcela das violências perpetradas pelos militares contra os povos indígenas, muitas delas ainda hoje ocultas.

Para o procurador da República Marlon Weichert, apesar das violações de direitos dos povos originários não terem começado na ditadura, “há padrões que se aceleraram ou ganharam intensidade no regime”. Foi nesse período que foram construídas grandes obras de infraestrutura e ‘integração’, porquê rodovias e usinas hidrelétricas, à revelia de qualquer recta indígena e ao dispêndio de muitas vidas.

Sem que as violências do regime militar contra os indígenas tenham sido adequadamente apuradas, não faltam casos de povos que continuaram tendo seus direitos violados mesmo em seguida o término da ditadura. Os Yanomami, mortos às centenas durante a construção da rodovia Perimetral Setentrião, e novamente durante o governo Bolsonaro. Já os Arara foram afetados pela Transamazônica no regime militar, por Belo Monte e pelo descaso nas últimas décadas. E esses são exclusivamente dois dos muitos exemplos.

“A ocultação da verdade e o esquecimento, são a mola propulsora da repetição e da recorrência”, afirma Weichert. “A sociedade brasileira naturaliza a violência contra os povos indígenas, naturaliza o espoliação das terras indígenas pelo agronegócio, pelo latifúndio. É uma prova viva de porquê a falta de conhecimento dessas violações facilita e contribui para a recorrência desses eventos”, diz o procurador.

Montejo e Weichert são duas das figuras por trás do Fórum Povos Indígenas: Memória, Verdade e Justiça (Fórum JTPI), que reúne organizações indígenas e da sociedade social que defendem a geração de uma Percentagem Pátrio Indígena da Verdade (CNIV). Além da Apib e da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federalista (MPF), o Fórum é encabeçado pelo Instituto de Políticas Relacionais (IPR) e pelo Observatório de Direitos e Políticas Indígenas da Universidade de Brasília (Obind-UnB).

A reivindicação, já presente nas 13 recomendações que a CNV fez para o Estado brasílio em relação aos povos indígenas, ganhou força nos últimos anos por dois motivos, segundo Weichert. O primeiro é um processo de compreensão paulatina do noção de justiça de transição pelos indígenas nas últimas décadas, até que a teoria amadurecesse e fosse apropriada pelos povos originários. Nos últimos anos, a Apib tem promovido seminários sobre o tema em seus territórios de abrangência, em uma espécie de “tentativa” para a CNIV.

O segundo é a “urgência histórico-jurídica” desencadeada pelo progresso da tese do Marco Temporal, que está travando a principal taxa dos povos indígenas: a demarcação de terras. A tese que considera que só devem ser demarcadas as terras em que havia ocupação por indígenas na data de promulgação da Constituição de 1988, foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federalista (STF) e em seguida tornada lei pelo Congresso. Desde portanto, está em processo de conciliação no Supremo.

“Recontar a história da repressão dos povos indígenas durante a ditadura vai escancarar a artificialidade e o equívoco conceitual manifesto da tese do marco temporal. É a história de povos que não estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988 porque tiveram seus direitos violados, foram forçados ao deslocamento, esbulhados, perseguidos, mortos, dizimados”, afirma Marlon Weichert.

A proposta solene de geração da CNIV, formulada pelo Fórum JTPI, deve ser apresentada ao Estado brasílio nos próximos meses. Ainda há alguns pontos em discussão, incluindo o seu escopo temporal – enquanto a CNV abarcou o período entre as promulgações da Constituição de 1946 e a de 1988, com ênfase no período militar, há discussões sobre a CNIV abranger um período maior, – mas é consenso que o protagonismo indígena precisa estar no meio.

“A gente quer reescrever a história dos povos indígenas no Brasil, porque tudo até agora foi ‘fake’ [falso], sem considerar, sem valorizar a participação dos povos indígenas na formação social brasileira. A não repetição [das violações da ditadura] tem que vir através de políticas de Estado estruturantes”, diz Paulino Montejo, da Apib.

O que se sabe sobre as violações contra os povos indígenas durante a ditadura militar

Recomendações da Percentagem Pátrio da Verdade

De conformidade com a Percentagem, entre as 8.350 vítimas indígenas da ditadura, foram mortos 1.180 Tapayuna, 118 Parakanã, 72 Araweté, mais de 14 Arara, 176 Panará, 2.650 Waimiri-Atroari, 3.500 Cinto-Larga, 192 Xetá, no mínimo 354 Yanomami e 85 Xavante de Marãiwatsédé. Em relação aos Guarani e Kaiowá, recorrentemente atacados no Mato Grosso do Sul e no Paraná, a CNV “não ousou apresentar estimativas”. Ao longo do documento de 60 páginas, são citados mais de 50 povos que sofreram qualquer tipo de violência durante as quatro décadas [1946 a 1988] analisadas, incluindo indígenas isolados.

Além de abordar uma parcela das violações sofridas pelos povos indígenas durante a ditadura, a CNV fez 13 recomendações ao Estado brasílio.

No campo da responsabilização, recomendou que o Brasil fizesse um pedido público de desculpas pelas violações e pelo espoliação territorial e reconhecesse porquê transgressão de motivação política a perseguição aos povos indígenas no período investigado.

No campo da reparação, além da geração de uma Percentagem Pátrio Indígena da Verdade, recomendou ampliação da anistia para contemplar reparação coletiva, geração de grupo de trabalho para instrução de processos de anistia e reparação aos indígenas afetados, fortalecimento de políticas de atenção à saúde, recuperação ambiental das terras indígenas degradadas e, “porquê a mais fundamental forma de reparação coletiva”, a regularização e desintrusão das terras indígenas.

A CNV também fez recomendações no campo da memória e informação, sugerindo campanhas nacionais sobre saudação aos direitos dos povos indígenas, inclusão no currículo solene da rede de ensino das violações sofridas por essa população, geração de fundos de fomento à pesquisa e divulgação da temática e sistematização no Registro Pátrio de toda a documentação relacionada a essas violações.

Em março de 2023, um relatório orientado pelo Instituto Vladimir Herzog constatou que a maior secção das recomendações relacionadas aos povos indígenas havia tido retrocesso nos anos anteriores, durante o governo de Jair Bolsonaro. O Instituto monitora o cumprimento de todas as recomendações da CNV periodicamente e um novo relatório será publicado nos próximos meses.

Outras iniciativas sobre as violações contra indígenas

Uma das mais significativas é o Relatório Figueiredo, que revelou violências cometidas contra povos indígenas nas décadas de 1940, 1950 e 1960. Produzido pelo procurador Jader de Figueiredo Correia em 1967, foi usado porquê justificativa para a extinção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e para a geração da Instauração Pátrio do Índio (Funai, hoje Instauração Pátrio dos Povos Indígenas). O relatório passou décadas tido porquê “eliminado”, até ser encontrado pelo ativista e pesquisador Marcelo Zelic, em 2013. 

Zelic, falecido em maio de 2023, foi um dos responsáveis pela CNV ter se debruçado, ao menos parcialmente, sobre as violações contra povos indígenas. Um dos principais defensores da instalação de uma Percentagem Pátrio Indígena. Ele criou o Armazém Memória, que compila milhões de páginas de documentos sobre direitos humanos, a ditadura e povos indígenas.

Outra iniciativa é o livro “Os fuzis e as flechas: História de sangue e resistência indígena na ditadura”, escrito por Rubens Valente. Uma das histórias do livro é contada no segundo episódio do podcast Morte e Vida Javari, da Filial Pública.

Posição do governo Lula 

Mesmo com a geração do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), a nomeação da primeira pessoa indígena para comandar a Funai e de uma mudança de postura generalizada frente aos povos indígenas em conferência com o governo Bolsonaro, a posição do governo Lula em relação ao estabelecimento da CNIV é dúbia.

A ministra Sonia Guajajara, do MPI, já se manifestou favoravelmente à iniciativa, assim como a presidente da Funai, Joenia Wapichana. Mas, em uma audiência promovida pela Percentagem Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o tema, o representante do governo brasílio, Pedro Montenegro, do Itamaraty, afirmou que a geração da CNIV ainda está “em debate” e não está “madura” para o Estado.

Para Paulino Montejo, da Apib, “não há muita vontade por secção do governo, que não quer ter atrito com os militares”. Na visão de Marlon Weichert, do MPF, a postura da atual gestão “representa as dificuldades de um governo de frente ampla”. “Nós somos muito cientes das dificuldades, mas também muito otimistas com a possibilidade e com o potencial que uma CNIV tem para fazer a diferença na história do país”, diz o procurador.

A Pública contatou os ministérios dos Povos Indígenas e dos Direitos Humanos (MDHC), questionando o posicionamento de ambas as pastas em relação à geração da CNIV e que ações foram adotadas em relação ao tema. O MDHC disse que a atribuição da taxa é do MPI. O Ministério dos Povos Indígenas não respondeu até a publicação da material. O espaço segue crédulo para sintoma.

Reparações conquistadas

Iniciativas capitaneadas pelo MPF, por entidades indígenas e organizações não governamentais conseguiram reparações tanto no campo judicial quanto no campo da memória. Muitas das violações contra povos indígenas, no entanto, nunca tiveram ações concretas e outras tantas sequer foram reveladas. 

Na Percentagem de Anistia, instalada em novembro de 2002, três casos relacionados a povos indígenas prosperaram. 

Em 2014, 16 indígenas Suruí-Aikewara foram anistiados em caráter individual, recebendo 120 salários mínimos cada um. O caso é relacionado ao combate do regime militar à Guerrilha do Araguaia, no Pará. Mesmo sem nenhuma relação com o movimento guerrilheiro, os Suruí, dos quais território é próximo do lugar onde o grupo se estabeleceu, foram vítimas de maus tratos, violência e tortura, além de serem obrigados a colaborar na caçada dos guerrilheiros, que foram massacrados. Além da anistia individual, os indígenas também pleitearam uma reparação coletiva, com a ampliação de seu território, demarcado durante a ditadura, o que ainda não ocorreu.

Mais recentemente, em 2024, a Percentagem anistiou coletivamente, de maneira inédita, dois povos: os Krenak (MG), e os Guarani Kaiowá, da Terreno Indígena Guyraroká (MS). Com as reparações, a Percentagem fez um pedido público de perdão em nome do Estado brasílio para ambos os povos, além de ter recomendado a demarcação dos territórios e medidas nas áreas de saúde, economia, cultura e memória.

Os Guarani Kaiowá foram expulsos de seus territórios na ditadura dentro de uma política adotada pelo Estado brasílio de remoção de comunidades e alocação em pequenas reservas indígenas entre 1940 e 1980. Eles lutam pela demarcação de seu território, que teve o processo anulado pelo STF em 2014, com base na tese do Marco Temporal. 

Já os Krenak, além de remoções forçadas, torturas, maus-tratos e assassinatos, foram confinados na própria terreno e viram seu nome virar sinônimo de encarceramento de indígenas. 

Em Resplendor (MG), a ditadura criou o Reformatório Krenak, onde ficaram presos mais de século indivíduos de ao menos 15 etnias, muitos sem denúncia formal, ou por motivações porquê “vadiagem” e consumo de álcool. Depois do fechamento do que a CNV chamou de “campo de concentração”, o regime militar alocou os Krenak em Carmésia (MG), no que ficou espargido porquê Quinta Guarani. Lá também houve o encarceramento de indígenas de diversas etnias, secção deles reprimidos pela empresa Aracruz Celulose.

As violações do regime contra os Krenak também são tema de duas ações judiciais movidas pelo MPF. A mais recente, de março, pede indenizações coletiva e individuais para os Krenak que foram expulsos de seu território e passaram a viver em uma rancho no interno de São Paulo. Ainda não há decisão em relação a esse pleito.

A segunda ação, movida em 2015, já teve sentenças na primeira e segunda instância, com pena do Estado brasílio por danos coletivos contra os Krenak. Além de uma cerimônia de reconhecimento das violações e medidas relacionadas à degradação ambiental e preservação do linguagem, o Judiciário também determinou a epílogo da identificação e delimitação da TI Sete Salões, o que ocorreu em 2023. O território ainda aguarda portaria declaratória do Ministério da Justiça.

Uma outra ação, na seara penal, tentava responsabilizar criminalmente o ex-capitão da Polícia Militar de Minas Gerais Manoel dos Santos Pinho pelo transgressão de genocídio contra os Krenak. O militar, no entanto, morreu em 2023, antes que a ação fosse julgada.

Além das etnias contempladas pela Percentagem da Anistia, os Waimiri-Atroari receberam decisões judiciais favoráveis em dois casos. Em 2018, uma decisão liminar reconheceu violações contra o povo na sinceridade da BR-174 (Manaus-Boa Vista) pelo regime militar, nas décadas de 1970 e 1980, quando a população caiu de 3 milénio para 332 indígenas. O processo está em temporada de conciliação. No ano pretérito, o Judiciário reconheceu violações relacionadas à inundação de áreas durante a construção da usina hidrelétrica de Balbina.

Em 2019, os povos Tenharim e Jiahui, afetados pela construção da Transamazônica (BR-230) no sul do Amazonas, receberam decisão judicial favorável em ação social pública movida pelo MPF, mas a sentença acabou suspensa. A construção da Transamazônica teve a participação da Paranapanema, empresa de extração mineral que teria mantido indígenas em “semi-escravidão” na ditadura, porquê relevou a Pública no privativo “Empresas cúmplices da ditadura”. Indígenas Tukano e Waimiri-Atroari também foram afetados pela ação da empresa. Esse ano, a Justiça Federalista manteve parte da pena.

O MPF também moveu ação social pública relacionada às violações sofridas pelos Xavante da TI Marãiwatsédé, no Mato Grosso. Além de Funai, União e Mato Grosso, 13 herdeiros da rancho Suiá-Missu foram acionados, incluindo o empresário bilionário Rubens Ometto, da Cosan. Em um primeiro momento, os indígenas foram assassinados ao tentar resistir à invasão de seu território e submetidos a condições análogas à escravidão. Depois, foram removidos em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) para outro território no estado, com quase uma centena de pessoas morrendo no processo. 

Há ações relacionadas a outros povos, incluindo os Avá-Guarani, afetados pela construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu; os Avá-Canoeiro, que chegaram a ser considerados extintos em seguida um processo de deslocamento forçado; os Panará, afetados pela construção da BR-163 e por remoções forçadas, os primeiros a obter condenação do Estado brasileiro; os Akrãtikatejê (Gavião da Serra), removidos de suas terras para a construção da hidrelétrica de Tucuruí; e os Cinto-Larga, vítimas de genocídio no início da dezena de 1960.

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