Indígenas protestam contra lei que inviabiliza educação presencial nas aldeias do Pará
13 min readUma lei aprovada no termo do ano pretérito no Pará está gerando intensos protestos de lideranças indígenas de diferentes etnias e regiões do estado. Eles acusam o governo de desmantelar o sistema de ensino indígena. Os manifestantes ocupam, desde terça-feira (14), a sede da Secretaria de Estado de Ensino (Seduc), em Belém, pedindo a revogação imediata da Lei 10.820/2024.
A Polícia Militar foi acionada para tentar dissipar os manifestantes, cortou força e chuva do prédio, jogou spray de pimenta nos banheiros e impediu a ingresso da prensa, de representantes do Ministério Público Federalista (MPF) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), mas os indígenas continuam no lugar, depois de forçarem o portão e ocuparem as estruturas da Seduc.
Há tapume de 300 indígenas no lugar, incluindo caciques das etnias Munduruku, Wai Wai, Tembé, Arapiun e Tupinambá, que afirmam simbolizar os mais de 55 povos indígenas presentes no território paraense.
Depois que eles entraram, o portão foi novamente fechado e ninguém mais conseguiu entrar. As lideranças dizem que só negociam com a governadora em tirocínio, Hana Ghassan (MDB) – o governador Helder Barbalho (também do MDB) está em viagem ao exterior –, ou com o titular da Seduc, Rossieli Soares, que teriam autonomia para revogar a lei. Ao termo do terceiro dia de protesto, Soares foi à secretaria no termo da tarde de quinta-feira, mas até o fechamento desta reportagem não havia ocorrido diálogo.
“A força cortaram, a chuva [cortaram] e jogaram spray de pimenta. Estamos em cárcere privado. Tem garoto, tem idoso, tem cacique que vieram de muito longe. E nós não vamos trespassar daqui, porque não saímos do nosso território para permanecer de blá-blá-blá”, disse Alessandra Korap, liderança Munduruku, no primeiro dia de ocupação. Em suporte à demanda indígena, o Sindicato dos Trabalhadores de Ensino Pública do Pará (Sintepp) decidiu entrar em greve universal, com início em 23 de janeiro.
A lei, aprovada em 19 de dezembro, no termo do ano legislativo, em votação fechada – e marcada pela repressão da Polícia Militar, que usou balas de borracha e spray de pimenta contra os professores estaduais – , altera o projecto de gratificações do Sistema Modular de Ensino (Some) e de sua versão para os povos indígenas (Somei).
Redução de gratificações inviabiliza ensino presencial; governo quer ensino à intervalo
A medida reduz as gratificações fixas de R$ 7 milénio para valores que podem variar entre R$ 1 milénio e R$ 7 milénio, de contrato com quatro níveis de complicação que variam de contrato com cada território onde o Some é implementado. A mudança, porém, não foi regulamentada, e os critérios para estabelecer os graus de complicação e a gratificação correspondente permanecem incertos.
Para os indígenas e sindicalistas, isso, na prática, pode inviabilizar a ensino indígena nas aldeias e em locais mais remotos. O recurso é necessário para a logística de viagens dos professores às comunidades indígenas, do campo ou ribeirinhas. É com ele que os professores pagam deslocamento, hospedagem, alimento, combustível e até confecção de materiais pedagógicos.
Em substituição, o governo do estado já implementa na rede de ensino o Núcleo de Mídias da Ensino Paraense (Cemep), modalidade de ensino à intervalo que funciona com uma televisão e um modem da empresa Starlink. Cada lição, transmitida a partir da sede da Seduc, em Belém, é acessada simultaneamente por até 80 salas de lição em diferentes municípios do estado. Nesses locais fica exclusivamente um professor mediador, de qualquer disciplina, para reunir dúvidas dos alunos.
Os indígenas argumentam que o sistema é incompatível com várias aldeias, muitas das quais não possuem força elétrica e dependem de geradores a diesel para necessidades do dia a dia. “Os alunos estão sendo abandonados, os professores também. Lição online não serve pra gente porque muitos alunos não falam português. Isso é violação de recta, é violação da nossa cultura”, disse Alessandra em um vídeo publicado nas redes sociais.
O Some funciona no Pará há mais de 40 anos. Foi concebido para que o ensino médio chegasse às localidades mais remotas do estado, porquê zonas rurais, ribeirinhas, aldeias indígenas e territórios quilombolas, onde o Executivo estadual tinha dificuldade em manter um professor fixo.
O programa é organizado em módulos de três meses, com os professores visitando comunidades preestabelecidas semanalmente. Cada módulo funciona porquê um intenso de uma disciplina, que terá todo o seu teor ministrado durante os três meses. Ao termo de cada módulo, os professores atendem outras comunidades.
A logística dessas viagens normalmente envolve custos altos, motivo pelo qual os professores do Some recebem, além do salário, as gratificações. Mas, apesar de ser um protótipo preposto pelas comunidades, a situação também é precária, porquê observou reportagem da Dependência Pública. Uma vez que o projeto não possui uma estrutura própria de escolas, os professores usam as salas de lição de escolas municipais de nível fundamental, não vasqueiro em péssimas condições de conservação.
Escola moderna vira sauna
No Pará, um dos municípios pioneiros na implementação do Some foi Igarapé-Miri, maior produtor de açaí do estado e do Brasil (em 2022 foi responsável por 21,7% da produção pátrio, totalizando 422,7 milénio toneladas). Em novembro de 2024, a reportagem da Pública esteve no município para visitar escolas onde o Some funciona.
A primeira paragem foi no rio Anapu, na Vila Menino Deus, distante mais de uma hora em lancha rápida da sede do município. Lá as aulas de ensino médio ocorrem na Escola Municipal de Ensino Fundamental Dom Antônio Macedo Costa.
Entregue em 2023, a escola conta com infraestrutura impecável: prédios novos, quadra esportiva, refeitório espaçoso e centrais de ar condicionado em todas as salas. Porém, a força elétrica monofásica transformou a escola em um elefante branco, já que a força fraca não dá conta dos aparelhos. As salas que deveriam ser climatizadas se transformam em saunas. Uma professora, que não quis se identificar, relatou ter presenciado, em duas oportunidades, alunos desmaiarem em sala de lição por motivo do calor.
No dia em que a reportagem esteve no lugar, a maior segmento das atividades de lição aconteceu no refeitório, que fica em um recinto espaçoso e um pouco mais aventado. Pelas condições de lição, porém, o regime de estudo é mudado, com alunos entrando no prédio às 13h e sendo liberados por volta das 15h30 para concluírem as atividades em lar.
O bigode ralo e alguns precoces cabelos brancos contrastam com a figura jovial do estudante Nilmar Lima Barbosa. Ele tem 19 anos e voltou a estudar em 2024, depois um ano retirado da escola (ele já havia pretérito um ano sem estudar em 2021 por motivo da pandemia).
Seus dedos e unhas têm marcas da tinta arroxeada do açaí que coleta durante uma jornada de cinco horas pela manhã, antes de ir para a escola. A atividade é o sustento de sua família, porquê a de muitas outras da região, e um dos motivos de ter interrompido os estudos.
Ele voltou à escola por incentivo da mãe, mas relata que não tem sido fácil. “Tem que se empenhar muito para aprender. Em sala de lição já é complicado, por motivo do calor. A gente passa três horas dentro da sala e já sai lavado [de suor]. Mas é pior estudar em lar com material, por não ter a explicação que o professor passa na sala de lição”, conta.
Mesmo assim, ele não pensa em desistir e tem planos para o porvir. Posteriormente concluir o ensino médio, ele sonha em estudar agronomia, para juntar o conhecimento científico ao que adquiriu empiricamente na lida nos açaizais.
Mais próxima do núcleo da cidade, a Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Bom Jesus I é uma típica fundação ribeirinha: construída toda em madeira sobre um palafita no rio Caji, possui salas de lição sem divisórias completas, o que permite que o som de uma lição seja ouvido por uma ou mais turmas. Uma vez que não dispõem de hospedagem, os professores vinculados ao Some costumam utilizar as dependências da escola para a estadia durante as semanas do módulo.
Por se tratar de uma escola na extremidade do rio, nos primeiros meses do ano, considerados os de inverno na Amazônia, o lugar costuma tolerar com alagamentos e surgimento de cobras e de outros animais silvestres.
“Essa escola já teve sua estrutura inteira reprovada pelo Corpo de Bombeiros, e a prefeitura municipal sabe, mas não tomou providências. É um duelo a gente não surtar diante de tantos obstáculos. Porque é uma odisseia para chegar lá, outra odisseia permanecer. E, por termo, ensinar um tanto aos alunos. O que sobra de sanidade, a gente guarda para treinar nossa função”, se queixa um professor que já ministrou módulos nessa escola e pediu anonimato.
Mesmo nessas condições, a escola Bom Jesus I está incluída no edital para contratação de professores em cadastro de suplente para inclusão no sistema de ensino à intervalo do Cemep. “A escola não tem nem condições de receber alunos com lição presencial, imagina com Cemep”, provoca o mesmo professor.
No ensino à intervalo, alunos não conseguem mostrar exercícios
Apesar da resistência da categoria contra a implantação do Cemep, o sistema já vigora em várias escolas do Pará. A reportagem visitou a Escola Emaús, situada na comunidade Novo Paraíso, também em Igarapé-Miri. Composta por um pavilhão com três salas de lição, um banheiro (que dispõe exclusivamente de um vaso sanitário e não tem pia para higiene das mãos), leva em sua frente a letreiro “Patrimônio da Parlamento de Deus”. Uma das salas de lição está cedida para o funcionamento do Cemep, atendendo o segundo ano do ensino médio.
Durante a visitante da reportagem, oito alunos assistiam a uma lição de matemática em uma televisão de 60 polegadas. A transmissão é garantida a partir de um modem da Starlink instalado na escola. O mediador responsável por manter a dinâmica em sala era o professor Roberto de Cássio Viana, que assumiu a função em 30 de setembro e, originalmente, atua nas disciplinas de estudos amazônicos, história e geografia.
“Minha função porquê mediador é chegar antes do horário, vincular equipamentos, receber os alunos, fazer a chamada e esperar o momento da lição. Uma vez que sou pedagogo, tenho conhecimento capital das áreas”, disse. As aulas vão das 13h30 às 17h.
Com mais de 20 anos de magistério, Viana conta que estava se adaptando ao novo formato, iniciado havia pouco mais de três meses, quando a reportagem esteve no lugar. Alguns hábitos, porém, fazem falta. “É uma adaptação. A gente chega cá para dar lição, né? Tem hora que a gente fica meio se segurando, mas não pode intervir, porque a lição é do professor. Eu sou mediador”, explica.
Uma vez que mediador, ele é responsável por reunir dúvidas e enviar para o professor de cada disciplina depois as aulas e prometer que os alunos não se distraiam com os aparelhos celulares, já que se permite que acessem a mesma rede que transmite as aulas. Segundo o professor, no Cemep, até mesmo as aulas de ensino física são transmitidas a partir da sede da Seduc, em Belém.
Durante a lição de matemática, o professor passou aos alunos uma equação e deu um tempo para solução do problema. Para mostrar os resultados, cada mediador pede a vez na transmissão, e um aluno pode mostrar seu resultado: com os cadernos na mão, eles levam a folha junto à câmera para o professor estimar se está correto ou não.
Mas com mais de 80 salas de lição conectadas, era inexequível, pelo tempo de lição, que todas as classes tivessem alunos interagindo com o professor responsável pela transmissão. Em pelo menos uma ocasião, foi provável notar que o professor não conseguiu visualizar o resultado demonstrado pela solução ruim de imagem. Com meia hora de lição, uma tela preta: o sistema caiu e demorou 20 minutos para a reconexão. “Por incrível que pareça, isso não acontece com frequência”, disse, no entanto, o mediador.
Apesar dos problemas do Some, os moradores de Igarapé-Miri ainda preferem o ensino à intervalo. É o que ficou evidente em uma sessão realizada na Câmara Municipal da cidade para discutir a permanência do sistema nas zonas ribeirinhas do município. A sessão contou com a adesão de pais de alunos e professores do sistema, com recta à fala.
Chamou atenção o prova de Soraia Souza, moradora da Vila Boa União desde a puerícia. Hoje com 50 anos, ela conta ter interrompido os estudos aos 12 anos de idade devido à extinção da escola na localidade. Ela só conseguiu voltar à escola nove anos depois, com a implantação do Some. Foi quando conseguiu concluir os ensinos fundamental e médio. E logo partiu para fazer faculdade de pedagogia.
Hoje diretora da Escola Municipal Neusa Rodrigues, que atende do maternal ao 5º ano, Soraia critica a teoria de substituir o regime presencial por ensino à intervalo nos moldes do Cemep. “A verdade do interno é dissemelhante. Temos muitos problemas de força, às vezes passamos dois, três dias sem. Quando o tempo começa a fechar, o sinal de internet vai embora. Não acredito que ver lição pela televisão daria manifesto cá”, diz.
Secretaria nega mudanças
Em nota enviada à reportagem, a Seduc negou que o Some será encerrado. “As áreas que já contam com levante sistema de ensino continuarão sendo atendidas por ele, no mesmo formato, e a perenidade do programa está garantida, conforme cláusula 46 e dentro V, da Lei 10.820, de 19/12/2024. A lei criou uma gratificação de até R$ 7 milénio, suplementar ao salário inicial do professor pago pelo governo do Pará, que hoje é de R$ 8.289,89, além de mais R$ 1,5 milénio de vale-alimentação”, disse a secretaria por meio de nota.
O Sintepp e representantes contestam essa asseveração da Seduc. Em nota publicada em suas redes sociais, o sindicato afirma que o texto da lei condiciona o pagamento da gratificação de contrato com quatro níveis de complicação, que variam de contrato com cada unidade e têm critérios ainda a serem regulamentados pela Seduc.
Segundo o Sintepp, a novidade lei exclui direitos porquê o pagamento dessas gratificações nas férias de janeiro e julho e em licenças superiores a 30 dias. “Não há regulamentação da lei aprovada. Não sabemos de zero do que iremos receber, pois a portaria de lotação de 2025 não foi divulgada pra nós, nem porquê será o nível de complicação das localidades”, afirma um professor que pediu para não ser identificado.
A Seduc disse ainda que “também não é verdade que o ensino médio presencial será substituído por ensino à intervalo”. Na nota, a secretaria disse que não foi feito nenhum pedido solene de reunião”. Depois da invasão, a Seduc fez um pedido para que as lideranças indicassem uma percentagem, o que até o momento não aconteceu”, continuou.
A reportagem questionou ainda de onde partiu a ordem para que a prensa não acessasse o prédio, mas não obteve resposta.
Em entrevistas a emissoras de televisão, o secretário Rossieli Soares afirmou que o movimento se tornou “político” e que o governo negocia com entidades indígenas. As lideranças da ocupação, porém, negam. “Queremos expor ao secretário que não existe uma percentagem negociando conosco. Se ele diz que há uma negociação, até agora ninguém veio sentar com a gente. Queremos a presença de quem tem autonomia para que possamos trespassar daqui com uma portaria assinada e publicada no Quotidiano Solene”, disse o cacique Dada Borari.
“Estão tentando nos vencer no cansaço. Mal sabem eles que nossos avós estão cá nos dando força. Mal sabem eles que a gente luta há mais de 500 anos e não vamos resfolgar. Portanto, saiam dos seus gabinetes e venham conversar com o povo”, disse Auricélia Arapiun.
O MPF e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) movem ação na Justiça Federalista para que cada um dos povos e comunidades tradicionais do Pará seja consultado de forma livre, prévia e informada, conforme estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), antes de qualquer tomada de decisão do Estado.
Até que essa consulta ocorra, o poder público deveria interromper qualquer medida de mudança do formato da ensino indígena e deve prometer a manutenção da ensino presencial, defendem o MPF e o MPPA na ação.