O recomeço de Muçum, a cidade que foi três vezes levada pelas águas
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As enchentes que devastaram Muçum, pequena cidade do interno do Rio Grande do Sul, pela primeira vez entre setembro e novembro de 2023, também arrastaram cenários e figurinos da tradicional encenação da Paixão de Cristo – espetáculo que revive os últimos sofrimentos de Jesus, segundo a tradição católica. Muitos dos atores voluntários perderam suas casas, e a tragédia deixou 21 mortos. Em meio ao luto, não havia clima para manter o evento no termo de março de 2024.
Menos de um mês depois da Páscoa do ano pretérito, a cidade seria mais uma vez arrasada por fortes chuvas. Daquela vez, praticamente todo o estado foi atingido, no que foi considerada “a maior catástrofe climática” da história do Rio Grande do Sul.
Neste ano, no entanto, a apresentação cristã foi retomada com público recorde, segundo os organizadores. Mais do que uma celebração religiosa, a Paixão de Cristo marcou simbolicamente a reconstrução de Muçum – cidade que teve 80% de sua espaço urbana destruída por uma sucessão de enchentes e perdeu 20% dos moradores.
“Apesar das dificuldades que a cidade ainda enfrenta, a gente decidiu voltar com o espetáculo porque não dá pra viver nesse círculo de tristeza”, disse o produtor Ranieri Moriggi. Um dos desafios foi ajustar o elenco, desfalcado porque muitas pessoas deixaram o município depois a tragédia. Alguns atores tiveram que interpretar dois personagens.
Um dos papéis que ninguém queria pegar – o de Judas Iscariotes, o evangelizador que traiu Jesus – acabou ficando com o prefeito, Mateus Trojan (MDB), reeleito no ano pretérito. Nascido em Muçum, ele participa do espetáculo há 15 anos e já fez vários papéis. “Nascente ano acabei sendo o vilão. É vasqueiro, mas acontece”, disse, com bom humor.

Eleito em 2020, aos 26 anos, Trojan não imaginava que enfrentaria os momentos mais difíceis da história de Muçum. Assim uma vez que outros municípios do Vale do Taquari, a cidade convive há décadas com alagamentos, por estar situada em planícies de inundação. A pior enxurro registrada até portanto havia ocorrido em 1941, quando o rio Taquari subiu mais de 29 metros. Em setembro de 2023, esse nível foi apanhado – e superado oito meses depois, em maio de 2024, quando a chuva ultrapassou os 31 metros.
Entre os dois episódios mais graves, outras três inundações atingiram a cidade – em novembro de 2023, maio e junho de 2024. Foram eventos menores, mas suficientes para manter a população em estado permanente de alerta. Ao todo, foram cinco enchentes em menos de oito meses.
Porquê Muçum se reergueu
A Filial Pública esteve no lugar logo após as enchentes, em maio do ano pretérito; voltou alguns meses depois, em setembro; e retornou agora, às vésperas da última grande enchente completar um ano. Nas visitas, notamos uma potente resiliência dos moradores, mesmo diante das dificuldades, e uma retomada lenta – mas permanente – das atividades típicas de um pequeno município.
A principal medida para evitar novas tragédias foi proibir que moradores de áreas consideradas de risco extremo voltassem para os locais. Havia murado de 400 famílias nesta situação. Todas foram incluídas em programas habitacionais e estão recebendo aluguel social enquanto não recebem as novas casas. Ainda há murado de 20 famílias que permanecem próximas ao rio Taquari, mas a prefeitura promete que elas receberão casas em terrenos mais altos até o termo de maio.
Para o engenheiro ambiental Fernando Fan, membro do Grupo de Pesquisa em Desastres Naturais da Universidade Federalista do Rio Grande do Sul, a decisão de impedir as pessoas de voltarem para áreas de risco foi “muito acertada”. “Essas áreas não são adequadas para as pessoas viverem, já que a chuva ali tem um ressaltado poder destrutivo”, diz.
Ele explica que retirar totalmente a população de áreas alagáveis “elimina o risco” e adia a premência de outras medidas emergenciais, uma vez que novas obras que podem ser demoradas ou até desnecessárias. Com isso, os sistemas de alerta passam a ser direcionados exclusivamente a quem possa ser afetado por cheias excepcionais, e não a todos os que vivem em lugares que sempre alagam, uma vez que era antes.
“É uma decisão muito triste, porque são as histórias das pessoas, a identidade delas, mas dada a possibilidade da perda de vidas, infelizmente não é verosímil retornar. Ainda mais num cenário atual de mudanças climáticas e ampliação de ocorrência das cheias”, afirma.
Considerada o “marco zero” da tragédia gaúcha, Muçum recebeu pelo menos R$ 40 milhões do governo federalista e R$ 8 milhões do governo estadual, além de outros R$ 12 milhões do caixa do município. A maior segmento do valor é destinada a projetos habitacionais.
A quesito para os moradores ganharem uma novidade morada é doar o terreno da antiga para a prefeitura. No lugar, a gestão planeja instalar parques e praças com o objetivo de ajudar a escoar as águas do rio em caso de novas cheias. Houve resistência de algumas pessoas, principalmente as que tinham terrenos maiores do que os novos lotes, mas ao longo do tempo foram convencidas (ainda que por falta de opção) de que a medida era principal para a segurança de todos.
O jubilado Sérgio Taborda estava capinando o terreno onde ficava a sua antiga residência durante a visitante do fotógrafo da Pública. Porquê o lugar foi réprobo uma vez que de elevado risco, ele e a família tiveram que se mudar pagando aluguel enquanto esperam a morada que será dada pelo poder público.
Taborda continua cuidando do lugar com a esperança de um dia poder voltar, mas o sonho vai diminuindo a cada dia pelo receio de passar por uma novidade calamidade. “O pavor faz com que a gente tenha uma certa certa cautela”, diz.

Além das medidas habitacionais, Trojan também firmou um convénio com nove empresas que concentram segmento significativa dos empregos do município: cederá terrenos em áreas não sujeitas a alagamentos, desde que as companhias se comprometam a manter suas operações na cidade pelos próximos 15 anos, preservando o número de postos de trabalho e o faturamento registrados em 2023.
Depois do traumatismo deixado pela enchente de setembro de 2023, o município intensificou os alertas para os moradores se deslocarem a lugares seguros: passou a usar carros de som, grupos de WhatsApp, rádio e redes sociais, além de mandar equipes da Resguardo Social diretamente às casas das pessoas que moram nos primeiros locais alagáveis.
A cidade fez treinamentos com moradores e a Resguardo Social sobre primeiros socorros e uma vez que agir em situações de crise, renovou as réguas de mensuração do rio Taquari e comprou antenas Starlink para permitir a informação em caso de queda de força. Também definiu novos locais de abrigo, já que os antigos passaram a ser atingidos pela chuva.
Com a população mais atenta, Muçum estava mais muito preparada quando ocorreu a enchente de maio de 2024. Enquanto houve 21 mortes em 2023, não houve nenhuma vítima trágico oito meses depois.
Apesar de as iniciativas para reconstrução estarem em estágio avançado, as de prevenção chegaram a um limite. Fernando Fan diz que novas medidas deveriam ser tomadas a longo prazo por órgãos do governo federalista, uma vez que a Filial Vernáculo de Águas e o Serviço Geológico Brasílico, e pelo governo estadual, que poderia realizar obras na bacia do rio Taquari. No entanto, uma vez que a Pública mostrou, há lentidão e falhas em ambos os casos.
Ainda assim, Muçum se destaca em relação a outras cidades da região também afetadas pelas enchentes. Um dos fatores, segundo o técnico, foi a experiência de 2023, quando o município sofreu mais que os vizinhos e, com isso, acumulou aprendizagem. “Aliás, tecnicamente, o prefeito tem tomado decisões ponderadas, baseadas no que a ciência indica”, opina Fan.
Resultado ou não das iniciativas, a população voltou a crescer – ainda que timidamente – nas contas da gestão municipal. Depois perder milénio dos 5 milénio moradores nos últimos meses, murado de 400 decidiram retornar.
Casas motivacionais e flores nos canteiros
A volta da Paixão de Cristo e a reabertura da ponte Brochado da Rocha, no início de março, foram os dois marcos simbólicos do recomeço da cidade. Inaugurada em 1963, essa ponte deu à Muçum o sobrenome de “Princesa das Pontes” e a colocou na rota turística do interno gaúcho.



É difícil não se impressionar com o colosso que cruza a cidade e chega a ter 100 metros de fundura no trecho mais elevado. Apesar de segmento dela ter sido levada pelas chuvas de maio do ano pretérito, nos meses em que ficou desativada, o que restou da obra ainda serviu uma vez que abrigo para moradores que fugiam das águas – e que acamparam lá em cima por dias até que a vasa baixasse. O projeto de reconstrução foi o primeiro a permanecer pronto, 30 dias depois da tragédia. Os recursos, R$ 9,6 milhões, vieram do governo federalista.
Canteiros com flores coloridas foram replantados na avenida principal, para dar “uma energizada” na cidade, uma vez que disse o prefeito. As mesmas flores também abundam no loteamento Jardim Cidade Subida 2, o primeiro espaço que foi estruturado para receber pessoas que perderam suas casas na enchente.
Treze casas foram entregues até agora e outras 42 devem transpor até o termo de maio. A promessa é de 80 novas moradias até o termo do ano e outras 200 até o termo de 2026, financiadas pelo poder público e empresas privadas.
Porquê o nome indica, o Jardim Cidade Subida fica num dos pontos mais elevados da cidade – elevado o suficiente para evadir de novas cheias, mas ainda com vista para o rio Taquari pela janela.
Teresa e Lisiane de Almeida, mãe e filha, viveram quase 40 anos na ingresso de Muçum, ao lado do rio. Acostumaram-se a conviver com enchentes, que vinham todos os anos. “A chuva subia, a gente saía, depois voltava, limpava e a vida continuava. Mas dessa vez não deu”, diz Teresa. “Por três vezes nós perdemos tudo.”
Em setembro de 2023, quando o rio começou a subir, as duas foram para a paróquia da cidade, que costuma ser usada uma vez que abrigo em situações de emergência. Mas outra filha de Teresa, prenha, optou por permanecer em morada com o marido. Eles acreditavam que estavam seguros porque a morada tinha um terceiro piso, onde a chuva nunca havia chegado antes. Tiveram que ser resgatados de paquete pouco antes de a morada submergir.

As duas receberam casas no novo loteamento. Cada uma das residências foi batizada com um nome inspiracional. Teresa vive agora na morada “Força”. Lisiane, na “Despertar”.
Pouco adiante, a aposentada Gemma Broca mora na “Sorriso” com seus dois passarinhos. A morada antiga foi totalmente levada pelas águas, junto com todas as memórias que tinha dos filhos e netos – sua maior tristeza. “A gente tentou colocar no teto, mas não adiantou. Foi tudo, até álbum de formatura”, conta. Porquê os demais vizinhos, sente falta da vida antes da mudança, mas concorda que agora está mais segura.


Outras vítimas da enchente devem ser alocadas no loteamento Renascer, atualmente em temporada de obras de infraestrutura universal e nivelamento dos terrenos, e no Jardim Cidade Subida 3, que está em processo de desapropriação do terreno. O último será o maior, com 200 unidades habitacionais, e deve acoitar não exclusivamente moradores que perderam suas casas na enchente, mas também os que moravam em locais de risco.
A maioria das famílias que viviam às margens do rio se mudaram ou estão na morada de parentes. Elas recebiam um auxílio-aluguel de R$ 800 mensais, que recentemente foi reduzido para R$ 500, depois namoro de repasses do estado e da União.
O vetusto cemitério, tão destroçado pelas cheias que chegou a ter pedaços de lápides levados pelas ruas adentro, ficará em um terreno doado por uma moradora e está em temporada de terraplanagem. Enquanto isso, falecidos estão sendo levados para cidades vizinhas.
Aos poucos a cidade retoma a sua rotina, tentando fugir do estigma de uma das cidades mais castigadas pela tragédia climática no Sul, que a fizeram ser conhecida no resto do país. “A cidade nunca voltará a ser exatamente uma vez que era, mas a dita normalidade será retomada nos próximos anos”, acredita Trojan. “Será em uma Muçum não igual, mas mais potente.”