São Paulo: Família tenta desarquivar caso de homem com deficiência morto pela PM

“Foi um baque enorme”, lembra a cozinheira escolar Beatriz da Silva Rosa, de 30 anos, sobre o momento em que recebeu a notícia de que a investigação da morte de seu marido tinha sido arquivada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a pedido do Ministério Público estadual.

Leonel Andrade Santos, 36, foi baleado junto com o companheiro de puerícia Jefferson Ramos Miranda, 37, em fevereiro de 2024, durante a Operação Verão — que deixou mais de 56 mortos pelas forças policiais na Baixada Santista, posteriormente o assassínio do soldado Samuel Wesley Cosmo, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a força peculiar da PM paulista.

Segundo familiares, na noite de 9 de fevereiro, Leonel encontrou Jefferson próximo à rua de moradia, no Morro São Bento, em Santos, e pararam para conversar porquê vez ou outra faziam. Eles teriam sido surpreendidos a tiros por policiais militares do Comandos e Operações Especiais (COE), que é vinculado ao 4º Batalhão de Choque.

Ao site Ponte Jornalismo, a mãe de Leonel afirmou que o rebento era usuário de drogas e teria sido baleado aos gritos de “sou morador”. Ela ainda denunciou que policiais tentaram impedir o socorro às vítimas, que, cada uma, um tiro no abdômen à longa intervalo.

Já a PM informou no Boletim de Ocorrência (B.O) que, durante patrulhamento, Leonel e Jefferson foram avistados armados, “um carregando uma mochila e o outro uma sacola”, e que dispararam quando notaram a presença dos agentes. Portando fuzis, o sargento Valci José Gouveia de Jesus contou que revidou “a injusta agressão” com três tiros e o cabo Rahoney de Paula Vieira, sete, de consonância com o boletim de ocorrência. Ambos não usavam câmeras corporais, pois o COE não foi contemplado pelo programa.

Ainda de consonância com os policiais, segundo o B.O, foram apreendidos com Leonel e Jefferson um revólver calibre .38 com numeração raspada (com cinco projéteis intactos e um deflagrado); uma revólver semi-automática calibre .45 (com oito projéteis intactos), porções de cocaína, maconha e haxixe; R$ 210, dois radiotransmissores e papeis supostamente com a contabilidade do tráfico de drogas.

Pouco mais de um mês depois, em 29 de março de 2024, o cabo Rahoney foi morto por policiais militares em São Paulo posteriormente ter sido confundido com um bandoleiro quando estava de folga.

Os promotores da Força Tarefa criada para investigar a Operação Verão, que conta com participação do Grupo de Atuação Privativo da Segurança Pública e Controle Extrínseco da Atividade Policial (GAESP), arquivaram o caso porque entenderam que não existiam indícios de que a narrativa fosse falsa, uma vez que os policiais teriam preservado o sítio onde as armas e drogas foram apreendidas.

Segundo o processo, o MPSP argumentou que a perícia indicou “uma curetagem [uma marca de desgaste] pontual na mureta” que era “comportável com dano causado por projétil de arma de lume”, embora a Polícia Técnico-Científica não tenha analisado se a marca era recente ou não.

Também afirmaram que a foto enviada pela esposa de Leonel, que mostra que ele estava de muletas momentos antes e a poucos passos de onde foi baleado, não esclarece a dinâmica dos fatos. Para os promotores, a munição picotada e o encontro das armas no sítio indicariam confronto e que “(…) a utilização de muleta não inviabiliza, por completo, o manejo e empunhadura, com uma das mãos, de arma de lume de canudo limitado”.

Leonel era egresso do sistema prisional há quatro anos e recebia o Mercê de Prestação Continuada (BPC), que garante pagamento de um salário mínimo por mês. Em 2010, ele levou um tiro na perna que prejudicou permanentemente sua mobilidade. “Ele mal ficava em pé. Não tinha porquê ele dar tiros”, diz Beatriz, indignada. A advogada Andrea Lemos, que a representa, disse que entrou com um recurso para que o tribunal reabra o caso e aprofunde as investigações.

Rebento de Leonel também foi morto pela polícia

Ao mesmo tempo, a cozinheira aguarda a desenlace das investigações sobre a morte do seu rebento Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, que tramitam em sigilo. A gaiato foi baleada 10 meses depois do pai numa ação da polícia quando brincava na porta de moradia, em 5 de novembro de 2024.

Durante o velório, os presentes se sentiram intimidados com grande presença da polícia no trajeto até o cemitério para o sepultamento. De consonância com o jornal O Globo, o laudo de balística detectou que o menino foi atingido por uma projétil calibre 12. Dentre as armas apreendidas, somente um policial utilizava uma espingarda com munição comportável com essa.

“Foi o adeus mais difícil. Eu tive que mudar de moradia porque não conseguia permanecer com meus outros filhos no mesmo lugar sem o Ryan”, lamenta Beatriz. “O que eu sinto é que estamos sendo abandonados, que o Ministério Público não tem interesse em investigar”.

Até o momento o MPSP fez três acusações contra policiais militares que atuaram na Operação Verão, referentes às mortes de Allan de Morais Santos, Luan dos Santos, Hildebrando Neto e Davi Gonçalves Junior – os dois últimos mortos na mesma ação. O órgão não informou quantos casos foram arquivados e quantos ainda estão sendo investigados posteriormente questionamentos da Dependência Pública.

Na Operação Escudo de 2023, que deixou 28 mortos na Baixada Santista também posteriormente o assassínio de um soldado da Rota, a Justiça arquivou, a pedido do MP, 23 das 27 investigações.

Mortandade policial em São Paulo

Em São Paulo, o aumento da mortalidade policial vem sendo associada diretamente à postura do governador e do secretário de Segurança. Desde a campanha eleitoral, Tarcísio e Derrite fizeram declarações que ora atacavam ora reforçavam a preço do programa das câmeras das fardas da PM, menosprezavam pesquisadores da espaço da segurança pública e descredibilizavam denúncias de violência policial.

Só no final do ano pretérito, com sucessivos episódios que envolveram as mortes de Ryan e de um estudante de medicina, além de um jovem arremessado de uma ponte pela polícia, Tarcísio reconheceu que “errou no discurso”, apesar de não ter tomado nenhuma medida na prática e mantido Derrite no função.

Enquanto a mortalidade policial aumenta, a atuação do Ministério Público tem sido muito aquém diante do cenário, diz a pesquisadora no Brasil da Human Rights Watch, organização internacional que atua na resguardo de direitos humanos. Andrea Roble avalia que a Operação Escudo e a Operação Verão tiveram “números alarmantes” de mortes. “O que a gente espera seria, no mínimo, a responsabilização pelos abusos. Mas o que a gente vê é um número muito grande de arquivamentos. Isso, com certeza, é alguma coisa que nos preocupa”, diz.

A diretora-executiva do Fórum Brasílio de Segurança Pública, Samira Bueno, concorda e avalia que o procurador-geral de Justiça, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, no função desde abril de 2024, não tem demonstrado uma postura firme quanto ao tema.  “Acho que o caso que ficou mais famoso no ano pretérito foi quando um policial arremessou um varão de cima de uma ponte e o Ministério Público ficou em silêncio por muito tempo. Acabou que ele se manifestou, mas demorou muito e tem se mostrado bastante leniente com as violências praticadas pela polícia”, diz.

Em 2023, quando o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o secretário da Segurança Pública Guilherme Derrite assumiram, foi o primeiro ano de atuação do GAESP. O grupo que fiscaliza a polícia foi criado em 2022 posteriormente quatro anos de pressão e insistência de movimentos sociais.

Antes, o que existia era o Grupo Privativo de Controle Extrínseco da Atividade Policial (Gecep), que fiscalizava somente a Polícia Social desde 2003, cabendo aos demais promotores realizarem o controle extrínseco dos policiais militares.

Desde 2007, o Juízo Pátrio do Ministério Público (CNMP) recomenda que o controle extrínseco da atividade policial pode ser exercida de forma difusa (por todos os membros) ou concentrada (quando há promotores específicos para essa atividade que podem ou não apinhar outras funções) a ser definida por cada MP. Nesta última é que entra a geração de núcleos ou grupos especializados.

O GAESP surgiu com uma finalidade ampla de diagnosticar, fomentar e vistoriar políticas públicas na espaço de segurança pública e de controle extrínseco. As investigações de mortes provocadas pela polícia se dão somente em casos considerados excepcionais, pois cabe aos promotores criminais locais a apuração.

O grupo começou com somente dois promotores, Danilo Pugliesi e Francine Sanches, porque a  portaria que o instituiu não determina quantidade de integrantes, a participação é voluntária e nem o CNMP regulamenta isso.

As mortes da Operação Escudo foram as primeiras em que o GAESP foi nomeado, pelo portanto procurador-geral Mario Sarrubbo, hoje secretário vernáculo de Segurança Pública, para atuar em conjunto com os promotores da Baixada Santista.

Quase três anos depois, ambos os promotores já não integram mais o grupo. Agora são os promotores Daniel Magalhães Albuquerque Silva e Sultane Rubez Jehá, com atribuição somente na capital. Ambos não quiseram dar entrevista, mas informaram, por assessoria de prensa, “que está sendo estudada a possibilidade de geração de um GAESP na Baixada Santista”.

Uma vez que a Pública revelou, menos de 5% dos promotores e procuradores dos MPs federalista e estaduais acham que vistoriar a polícia é prioridade do Ministério Público, de consonância com uma pesquisa realizada pelas universidades federais de Minas Gerais (UFMG) e do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e estadual de Campinas (Unicamp) e obtida com exclusividade.

O estudo ainda apontou que controle extrínseco da atividade policial foi o pior medido entre diversas temáticas de atuação do órgão. Uma das coordenadoras da pesquisa, a professora Ludmila Ribeiro, disse à reportagem que os resultados indicam que os membros reconhecem o problema, mas não têm interesse em abraçar a missão, apesar de ser uma função constitucional.

Bueno considera que a geração de grupos especializados podem melhorar essa atividade, mas que sozinha não se garante. “É uma decisão política mais do que tudo. A decisão de ser leniente com essas ações violentas também é uma decisão política”.

Aliás, porquê o posto de Procurador-Universal é definido pelo governador por lista tríplice, o que por si só já é uma nomeação política, e pelo MP depender do trabalho das polícias para promover ações penais, Bueno aponta que depende muito do perfil do ocupante do função em querer ou não se indispor com o governo.

Em 2023, a Human Rights Watch apontou que não houve preservação adequada das cenas em que 15 vítimas da Operação Escudo morreram, o que é incompatível com padrões internacionais de investigação de mortes por arma de lume.

Uma das principais reivindicações da ONG é de que o CNMP regulamente as investigações do MP em crimes cometidos por agentes da segurança pública a término de dar diretrizes para os membros. Enquanto esta reportagem era produzida, o juízo aprovou a proposta, que ainda não foi homologada. “A gente tem um problema muito grave hoje no Brasil que é a falta de independência das investigações, porque, na prática, o que acontece é a polícia investigando a polícia”, explica Roble.

Para ela, o Ministério Público deve liderar as investigações nos casos de afronta pela polícia, conduzindo apurações próprias e não depender somente do que é produzido pela Polícia Social. “A gente compreende que isso requer adaptações na estrutura do Ministério Público e reconhece que tem desafios para isso intercorrer de forma ampla, mas precisa ser feito”, enfatiza.

Em nota, a assessoria do MPSP disse que o órgão abriu uma investigação para cada morte ocorrida na Operação Verão. Sem dar detalhes, informou que “em relação aos arquivamentos, a sintoma dos promotores de Justiça se encontra nos autos”. “O controle extrínseco da atividade policial é feito não somente pelo Grupo de Atuação Privativo de Segurança Pública e Controle Extrínseco da Atividade Policial (GAESP), no projecto difuso, mas também por promotores de Justiça com essa atribuição em todo o Estado, de forma concentrada”, informa o texto.

A Pública pediu entrevista com o presidente da Percentagem de Controle Extrínseco da Atividade Policial do CNMP, mas, a assessoria informou que as respostas seriam dadas por e-mail. Por nota, o juízo informou que “o pintura de dados sobre controle extrínseco da atividade policial será reformulado a partir do segundo semestre deste ano para incluir novos indicadores, novos recortes dos já existentes, incluindo os dados de mortalidade e vitimização policiais”.

O CNMP não respondeu por que demorou tanto a atualizar as diretrizes para o controle extrínseco, qual a avaliação dos resultados da pesquisa, se concorda que existe uma agenda anticorrupção que é priorizada e porquê os MPs podem lastrar essa atuação.

Já sobre a solução sobre investigações de mortes por agentes públicos, o CNMP afirma que é “um progressão significativo” que “reforça a institucionalidade da resposta estatal a esses crimes e contribui para a transparência e legitimidade das investigações, embora não se desconheça os desafios que será a implementação dessa novidade atribuição aos MPs, sejam de origens administrativas ou orçamentárias”.