“Haverá sempre outras utopias para desenredar”
9 min readO CICC, que há 30 anos mudou o nome para Teatro das Beiras, completa esta quinta-feira, 7, meio século e Fernando Sena, 71 anos, está desde o início na primeira companhia profissional da região, que produziu 118 peças e conta com muro de 3400 apresentações para mais de 300 milénio pessoas. O diretor afirma que a estrutura está fixo e olha para o horizonte do coletivo sem si. Do trajectória, destaca os muitos autores encenados, o serviço público feito e as centenas de profissionais que passaram pela Travessa da Trapa.
NC – Em que é que o Grupo de Mediação Cultural da Covilhã (GICC) mudou o quadro cultural da Covilhã?
Fernando Sena (FS)- Havia um tempo antes do GICC e outro depois. A região praticamente não tinha programação cultural absolutamente nenhuma e o GICC, na profundidade, além de encetar a fazer espetáculos, que se foram repetindo ao longo dos anos com regularidade, começámos em 1980 a fazer o Ciclo de Teatro do Outono, que foi sempre crescendo e chegou aos 30 espetáculos, mas também descentralizada em relação a outros concelhos, porquê Idanha-a-Novidade, Belmonte. Era o grande ocorrência cultural do ano em toda a região e isso também deu uma visibilidade ao nosso trabalho.
NC – A atividade não se cingia ao teatro.
FS – A programação teve sempre música, dança, exposições, colóquios, apresentações de livros. No início tivemos um grupo de música, tivemos um grupo que dava aulas, que fazia a campanha de alfabetização. Várias pessoas fizeram a quarta classe com as aulas que tiveram cá e isso tudo foi muito motivador em termos da mediação que o teatro teve na cidade e na região.
NC – Quem eram as pessoas que criaram esse grupo amásio?
FS – Era um grupo completamente heterogéneo. Desde operários da indústria têxtil a professores, funcionários públicos, funcionários administrativos. Havia um pouco de tudo nesse grupo.
NC – Há uma relação entre o 25 de Abril e a geração do GICC?
FS – Não seria a mesma coisa. Havia a vontade de fazer coisas novas. Já que era permitido, por que não fazer? E nós fizemos. Fomos constituídos assim, com os ventos da liberdade a varrerem-nos e a empurrarem-nos para a frente.
NC- O que é que mudou há 30 anos, com a profissionalização da companhia?
FS- São dois períodos distintos, porque a profissionalização permitiu-nos ter uma equipa permanente a trabalhar só em teatro, a poder fazer espetáculos de segunda ou terça até sábado, ter escolhas de textos e programas a dirigidos a alunos do ensino obrigatório e do secundário. Tornou-se verosímil fazermos espetáculos em qualquer dia da semana, de manhã e de tarde. Era completamente impossível fazer isso enquanto grupo de amadores, em que as pessoas tinham as suas profissões e se juntavam ao término da tarde ou à noite para trabalhar.
NC- Isso refletiu-se na qualidade e na quantidade dos espetáculos?
FS – Na quantidade, mas, essencialmente, na qualidade. Ainda durante o tempo de amadores nós começámos a trabalhar com profissionais. O Zé Martins e o Mário Alberto foram os primeiros a concordar esses desafios. O José Manuel Castanheira também participou depois na cenografia. Havia já um caminho a encetar a ser percorrido, mas que depois foi completamente dissemelhante, porque tínhamos a hipótese de contratar as pessoas que escolhíamos e que estavam disponíveis para virem até à Covilhã e trabalharem connosco. Passámos a ter também atores todos eles vindos escolas de teatro e, portanto, a qualidade, obrigatoriamente, tinha de ser um acrescento ao nosso trabalho.
NC – A mudança do nome para Teatro das Beiras para abranger a dimensão de uma região foi um propósito conseguido?
FS – Eu acho que a região praticamente não existe, a não ser no papel. A solidariedade entre concelhos foi-se esbatendo. Em relação ao Teatro das Beiras, nós chegámos a ter vários protocolos com autarquias da região e hoje praticamente não existem, porque na verdade, e incompreensivelmente, não é uma região que esteja unida em torno dos problemas que a própria região tem e dos desafios que a região devia assumir. O que vemos é um desfasamento e uma diferença de posições em relação ao que se labareda Margem Interno, porque essencialmente era por aí que nós gostaríamos que fosse a nossa zona de implantação e de trabalho. Ela aconteceu muito no princípio, talvez porque era uma novidade ter uma companhia profissional e com disponibilidade para trabalhar todos os dias da semana, mas isso foi-se perdendo ao longo dos anos.
NC – Foi a primeira companhia profissional em toda a região?
FS – Sim. Aliás, praticamente todas as outras estruturas profissionais que apareceram, aparecem a partir de pessoas que fizeram segmento das equipas do Teatro das Beiras
NC – O Festival de Teatro, uma das bandeiras do Teatro das Beiras, tem os espetáculos todos centralizados na Covilhã, mas já foi descentralizado. Isso é revérbero de quê?
FS – Da reflexão que se fez sobre o que era hoje a programação cultural da região, que é completamente dissemelhante da que existia há 30 anos. Hoje todas as cidades têm a sua programação e havia que repensar o festival em função dessa novidade verdade e até mesmo em relação à própria cidade da Covilhã. Hoje não se justifica estar a fazer um festival com 20 ou 25 espetáculos quando temos um Teatro Municipal que tem a sua programação ao longo do ano e nós próprios assumimos que, perante essa verdade, era melhor fazermos um festival mais limitado, mas estender a programação na nossa sala durante o ano, por isso criámos as Quartas de Teatro, que têm corrido muito muito.
NC – Em 118 produções próprias, quais deixaram mais marca?
FS – Em universal, a marca do espetáculo fica associada sempre a algumas situações novas. A “Tragicomédia pastoril da Serra da Estrela”, que é o primeiro espetáculo da companhia profissional, é uma marca. O “Zoo story”, que é o primeiro espetáculo a ser feito no auditório a partir do momento em que a antiga Fábrica Barata passou a ser propriedade do GICC, também, mas ao longo dos anos há outros espetáculos que nos deixaram recordações.
NC – O que é que o Teatro das Beiras gostaria de fazer e não está a fazer?
FS – Há sempre muitas coisas que gostaríamos de fazer. Independentemente de termos um espaço que é nosso, é adequado de uma fábrica e, portanto, logo à partida é limitativo, apesar de ser muito bom ter um auditório, com 90 lugares, e podermos desenvolver o nosso trabalho e programá-lo ao longo do ano. Agora, porquê é evidente, outra perspetiva teríamos se, porquê nós sempre desejámos, tivéssemos uma sala de raiz e que fosse construída para ser um teatro, e não uma fábrica adaptada para ser um teatro.
NC – Leste prédio tem 80 anos e o auditório não é grande. A recuperação do Teatro Municipal dá resposta às necessidades?
FS – Dá resposta em relação a algumas das coisas que eu sempre referia, que era em termos de programação possuir espetáculos excessivamente grandes para nós podermos fazer no nosso auditório, no nosso palco, que é um palco pequenino. Hoje temos a escolha de poder utilizar o Teatro Municipal dentro das regras que foram estabelecidas para utilização das estruturas profissionais. Não dá resposta a outras. Nós não podemos estar a edificar um espetáculo novo no Teatro Municipal, porquê é óbvio.
NC – Nestes 50 anos, qual foi o momento mais difícil da companhia?
FS – Quando ficámos sem escora, em 2018. Houve outro anterior, em 2012, em que nós passámos de ter um escora de 200 milénio euros para ter 80 ou 90 milénio. Aí também foi muito complicado, mas conseguimos ultrapassar essas fases. Na segunda vez depois acabámos por ter escora porque houve um acréscimo de verba para as companhias que não tiveram o escora, mas estavam dentro dos limites que o próprio concurso exigia. A fórmula de operação é hoje completamente dissemelhante. Nós hoje concorremos a patamares e naquela profundidade era por percentagem e, portanto, poderia chegar ao término de dez estruturas apoiadas e não possuir mais verba, apesar de possuir 20 que cumpriam os objetivos.
NC- Isso obrigou a reduzir a estrutura.
FS – Na primeira vez sim, reduzimos, e muito, a estrutura, e repensámos os espetáculos. Foi uma temporada complicadíssima.
NC – O que é que mais o orgulha neste trajectória de meio século?
FS – Ainda cá estarmos a fazer coisas e a fazer coisas novas. Isso é que era, com certeza, impensável há 50 anos.
NC – E qual foi o momento mais marcante nestes 50 anos?
FS – São vários. Não ressaltava um, porque há várias pessoas que aceitaram trabalhar connosco. A questão de termos o nosso espaço é um momento marcante, porque isso também conduz à segurança da companhia. Se calhar, é das coisas mais importantes. Ultrapassámos a temporada em que estivemos no agora Teatro Municipal, na profundidade Teatro-Cine, onde nos acontecia tudo. Por exemplo, estrearmos um espetáculo e a seguir à estreia do espetáculo sermos obrigados a desmontar todo o cenário, porque a autonomia tinha resolvido fazer um espetáculo no dia a seguir. Nós trabalhávamos durante a noite para poder fazer a montagem do espetáculo e no outro dia apresentarmos novamente o espetáculo ao público. É evidente que isto é completamente de loucos. Essa questão, tendo um espaço, foi completamente ultrapassada.
NC – Qual é o grande legado do Teatro das Beiras?
FS – As pessoas que passaram por cá, porque são muitas. Estamos a falar de encenadores, de atores, de técnicos, de pessoas que trabalharam ao nível administrativo e de outras que deram a sua taxa de forma um pouco anónima, porque há as pessoas que nós não vemos nos espetáculos. Toda essa gente foi importantíssima ao longo dos anos para que o Teatro das Beiras pudesse desenvolver o trabalho com a qualidade com que o tem feito.
NC – Porquê olha para o horizonte do Teatro das Beiras?
FS – Sem mim. Hoje a companhia está completamente estabilizada e penso que não há razão nenhuma para que não continue a ter o escora da Direção-Universal das Artes e, portanto, acho que é somente uma questão de escolher as equipas certas para fazer mais espetáculos e continuar o trabalho que tem sido feito até cá.
NC – Será uma companhia com os mesmos objetivos, ou que pode percorrer caminhos diferentes?
FS – As pessoas serão diferentes e, com certeza, vão percorrer caminhos diferentes. É o normal da vida.
NC – Vocês já fizeram muita coisa. Já houve cá muitos espetáculos de música, agora estão mais centrados no teatro.
FS – Os espetáculos de música programámos. Isso tem que ver também com a evolução da programação da própria região. Nós trouxemos por exemplo o Zé Mário Branco, o António Vitorino de Almeida, porque na profundidade ou vinham ao Ciclo de Teatro ou Festival de Teatro, ou logo ninguém podia presenciar a um concerto, porque simplesmente não eram programados em lado nenhum. A partir do momento em que há uma programação em que a música é um fator chave para a programação dos teatros na região, deixa de fazer tanto sentido que nós estejamos a teimar na música. Nós somos apoiados é para apresentar teatro e vulgarizar o teatro. E é isso que temos feito.
NC – A título individual, para alguém que está desde o início, o que fica destes 50 anos?
FS – Fica o prazer de ter feito aquilo que gostava e ter conseguido, porque o trabalho do Teatro as Beiras não é do Fernando Sena, era um coletivo de muita gente, mas ter constituído as equipas que conseguiram que o Teatro das Beiras fizesse levante caminho de 50 anos é o que fica.
NC – Foi o concretizar de uma utopia, porquê me disse numa ocasião?
FS – As utopias nunca estão completamente concretizadas, mas vão-se completando, ano depois ano. Haverá sempre outras utopias para desenredar e para se percorrer o caminho.
Manadeira: https://noticiasdacovilha.pt/havera-sempre-outras-utopias-para-descobrir/