Governo Bolsonaro fez 4,5 milénio relatórios secretos e Lula manteve “sigilo eterno”
7 min readDocumentos obtidos pela Filial Pública revelam que, durante o governo de Jair Bolsonaro, a produção de relatórios sigilosos no setor de perceptibilidade do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) cresceu mais de 700% em relação aos quatro anos anteriores.
Os relatórios desse tipo, por serem produzidos na dimensão de perceptibilidade, não são necessariamente submetidos ao crivo do Poder Judiciário nem do Ministério Público. O órgão que poderia fiscalizá-los, uma percentagem do Congresso Pátrio chamada Percentagem Mista de Comitiva de Atividades de Lucidez (CCAI), nunca requisitou o conjunto desses documentos, mas unicamente uma pequena parcela, relativa ao ano de 2020 sobre um tópico específico.
Depois a posse de Lula em janeiro de 2023, o MJSP novamente se recusou a fornecer à Pública uma simples listagem desses relatórios, por vezes usando os mesmos argumentos da gestão Bolsonaro.
Por que isso importa?
- Sem precisar registrar a motivação da consulta, pessoas podem ser monitoradas nas ruas sem prévia estudo do Judiciário e fora de inquéritos policiais.
- Com 55 milénio usuários civis e militares, sistema Córtex de perceptibilidade explodiu desde o governo Bolsonaro e será expandido no governo Lula.
- O MJSP detectou casos de venda de senhas e presença de contas automatizadas no sistema Córtex, que extraíam grandes volumes de dados sigilosos de milhões de brasileiros.
O MJSP elaborou, durante os quatro anos do governo Bolsonaro, 4.569 relatórios de perceptibilidade, o que representou uma média de 1.142 documentos por ano – ou três por dia – no período 2019-2022.
Nos quatro anos anteriores, durante os governos de Dilma Rousseff (2015-2016) e de Michel Temer (2016-2018), o MJSP produziu 552 relatórios do gênero, ou 138 documentos por ano, em média.
A média anual durante os anos do governo Bolsonaro, portanto, registrou um salto de 727% (de 138 relatórios para 1.142 ao ano). Nesse período, a pasta foi comandada por três ministros: o ex-juiz e atual senador Sergio Moro (União-PR), o atual ministro do Supremo Tribunal Federalista (STF) André Mendonça e o representante da Polícia Federalista Anderson Torres.
Durante o primeiro ano do governo de Lula, a produção de relatórios do gênero continuou expressiva. Foram confeccionados 1.720 documentos unicamente de janeiro a setembro de 2023. Na quadra, o ministério era comandado pelo ex-governador do Maranhão Flávio Dino, atual ministro do STF.
Lucidez foi protegida e ganhou mais espaço no governo Lula
Até janeiro de 2019, a dimensão de perceptibilidade do MJSP era uma coordenadoria que costumava atuar em grandes eventos esportivos ou investigações pontuais, em peculiar casos de pedofilia, que geraram uma série de operações denominada “Luz na Puerícia”, executadas pelas polícias estaduais.
A posse de Bolsonaro levou a alterações na organização e nos objetivos da coordenadoria. Por decisão do logo ministro Moro, a coordenadoria ganhou o status de secretaria, denominada Secretaria de Operações Integradas (Seopi), e recebeu a novidade conhecimento de “estimular e induzir a investigação de infrações penais, de maneira integrada e uniforme com as polícias federalista e civis”.
Na quadra em que a novidade atribuição se tornou pública, os advogados criminalistas Leonardo Magalhães Avelar e Alexys Campos Lazarou, membros do Observatório do Recta Penal, alertaram para o risco de geração de uma espécie de “Abin paralela” dentro do MJSP e pontuaram que a Seopi não tinha “atribuições inerentes à Polícia Judiciária e, mesmo que fosse esse o intento inicial do governo, tampouco poderia um decreto legislar em material penal”.
Em junho de 2020, descobriu-se que a Seopi do MJSP havia produzido dossiês contra policiais e professores antifascistas na mesma quadra em que o logo presidente Jair Bolsonaro havia feito um exposição em Águas Lindas (GO) contra “grupos de marginais, terroristas, querendo se movimentar para quebrar o Brasil”. Depois a denúncia, a produção desse tipo de dossiê pelo MJSP foi declarada ilegal pelo plenário do STF.
Depois a posse de Lula em janeiro de 2023, a Seopi voltou a ser uma coordenadoria, a Coordenação-Universal de Lucidez (CGINT), subordinada à Diretoria de Operações Integradas e de Lucidez (Diopi), por sua vez controlada pela Secretaria Pátrio de Segurança Pública (Senasp) do MJSP. Desde março, por escolha do atual ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, a Senasp é comandada pelo ex-procurador-geral de Justiça de São Paulo Mario Luiz Sarrubbo.
Embora supostamente “rebaixado” à coordenadoria, o setor de perceptibilidade continuou fortalecido dentro do MJSP e manteve a produção, em larga graduação, de seus relatórios de perceptibilidade. Desde a gestão de Flávio Dino, tais relatórios continuaram sob o véu do “sigilo eterno”, isto é, sem classificação prevista na Lei de Entrada à Informação (LAI).
Há sinais de que a dimensão de perceptibilidade do MJSP ganhou ainda mais relevância no governo Lula. Um documento do MJSP de 2023, subscrito por Lula e Dino, anunciou o lançamento de um Programa Pátrio de Enfrentamento das Organizações Criminosas (Enfoc). Segundo o governo, a iniciativa iria receber ao todo R$ 900 milhões.
De entendimento com o documento, a Diopi tornou-se responsável pela coordenadoria-executiva do programa Enfoc. Um dos objetivos do Enfoc é justamente “expansão e aprimoramento do sistema de cercamento eletrônico – Córtex”.
Conforme a Pública revelou, o Córtex é uma plataforma que permite, entre outras coisas, monitorar e seguir carros e pessoas nas ruas e rodovias. O termo “cercamento eletrônico” se refere a uma funcionalidade do sistema que permite escolher determinado coche, a partir de sua placa, e passar a monitorá-lo ao longo de todo o dia e por tempo indeterminado.
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Teor da maioria dos relatórios é incógnita
A partir de uma tradução do setor de perceptibilidade que se valeu de uma portaria ainda hoje em vigor, assinada pelo logo ministro Moro, os documentos do governo Bolsonaro nunca foram classificados nos três níveis previstos na LAI: reservado (sigilo de cinco anos), secreto (15 anos) e ultrassecreto (25 anos).
Fugindo dessas três classificações, eles foram considerados pelo MJSP uma vez que “restritos” e, dessa forma, representam a prática do “sigilo eterno” que Lula, logo candidato à Presidência em 2022, havia prometido combater. Em um debate na TV Mundo no primeiro vez das eleições, em setembro de 2022, Lula disse a Bolsonaro: “Eu vou fazer uma coisa, vou fazer um decreto acabando com seu sigilo de 100 anos para saber o que tanto você quer esconder por 100 anos”.
A prática do sigilo eterno, mas, permaneceu inalterada ao longo do último ano e meio no setor de perceptibilidade do MJSP.
Desde 2023, já no governo Lula, o MJSP se recusou por diversas vezes a atender pedidos feitos pela Pública por meio da LAI para ter aproximação a uma simples listagem dos assuntos tratados nos relatórios durante o governo bolsonarista.
A Controladoria-Universal da União (CGU) chegou a instituir a liberação da listagem, mas, em seguida uma reação do MJSP, ainda que fora do prazo legítimo, voltou detrás e desautorizou a liberação dos dados. O MJSP primeiro alegou que não poderia fornecer os documentos em virtude de um sigilo peculiar vinculado à atividade de perceptibilidade. Depois ter esse argumento derrotado, passou a proferir que o pedido era genérico e impossível de ser cumprido, no que foi bravo pela CGU.
Tal comportamento do MJSP durante a gestão de Dino, bravo pela CGU, rendeu ao ministério o irônico Prêmio Cadeado de Chumbo 2023, conferido pelo Fórum de Recta de Entrada a Informações Públicas e pela Rede pela Transparência e Participação Social, formados por diversas organizações não governamentais ligadas ao tema da transparência pública.
O MJSP ganhou o prêmio na categoria “Contorcionistas e malabaristas”, quando “o órgão responde ou nega aproximação à informação utilizando argumentos sem fundamento, errôneos ou absurdos”.
Depois a recusa da liberação da listagem, a Pública solicitou os relatórios sobre determinados tópicos: manifestações políticas, eleições, Amazônia e movimentos sociais. O MJSP logo forneceu unicamente dez documentos (do totalidade, vale lembrar, de 4.569 relatórios produzidos durante o governo Bolsonaro).
A liberação do MJSP foi resultado de uma decisão anterior da CGU, sobre outro pedido feito pela LAI em 2023. A CGU disse que o ministério deveria liberar os relatórios solicitados sobre os temas listados desde que “não envolvam conteúdos próprios de atividades de perceptibilidade e ainda eventuais relatórios com atividades de perceptibilidade que tenham sido tarjados até o prazo de atendimento”.
É impossível saber quantos e quais são os relatórios tarjados ou quais relatórios o MJSP considera se encaixarem nos limites indicados pela CGU.
Alguns desses relatórios já liberados se tornaram reportagens na Pública. Conforme revelado em abril, quatro desses documentos falavam do plebeu escora das Forças Armadas às operações de retirada de invasores garimpeiros da Terreno Indígena Yanomami de 2021 a 2022. Os outros documentos são unicamente descrições superficiais de determinadas operações desencadeadas nos estados com escora da perceptibilidade do MJSP.
A Pública apurou que, desde a posse de Lula, em 2023, não foi adotada nenhuma iniciativa no sentido de fazer uma ampla avaliação dos relatórios da era Bolsonaro.
Pelo contrário, conforme a Pública revelou, durante a gestão de Dino um grupo de trabalho chegou a cogitar fazer uma auditoria sobre o pretérito do sistema Córtex, uma das ferramentas utilizadas para a produção dos relatórios de perceptibilidade, mas voltou detrás e decidiu auditar unicamente dali para “o horizonte”.