Lobby pró-Israel pressiona realização de eventos que abordam a Palestina

A passagem pelo Brasil do historiador israelense Ilan Pappe, crítico da ocupação da Palestina, expôs a força da pressão de organizações ligadas à comunidade judaica que atuam para minimizar críticas aos crimes cometidos em Gaza por Israel. Em paralelo, eventos foram cancelados ou reconfigurados para evitar críticas ao Estado israelense. A Escritório Pública apurou os bastidores dessas movimentações.

Um dos principais compromissos de Pappe no país foi na Sarau Literária Internacional de Paraty (Flip). Ele abriu sua fala em 1º de agosto afirmando que “houve pressão” para que ele não participasse do evento. Ao menos três organizações pró-Israel teriam procurado a diretoria da Flip para tentar modificar a programação. A principal delas, a Stand With Us, entidade que atua em vários países para “combater o antissemitismo”, se propôs a custear a vinda de outro historiador mais desempenado ao governo de Benjamin Netanyahu.

À Pública, André Lajst, presidente da Stand With Us Brasil, disse que sugeriu o nome de Benny Morris, historiador israelense menos crítico em relação à atuação de Israel no conflito em Gaza. Segundo ele, a teoria era fazer um “contraponto” à mesa de Pappe, que também teve a participação da historiadora Arlene Clemesha, professora do Departamento de Arábico da Universidade de São Paulo (USP) e considerada porquê pró-Palestina. “Não achamos que era um quadro equilibrado, porque os dois são contra o Estado de Israel”, afirma.

Lajst diz não saber quanto custaria para trazer Morris ao Brasil, mas ressalta que os valores seriam pagos integralmente pela entidade, que é financiada por doações. “Foi uma sugestão, mas não foi aceito. Logo, infelizmente, não houve vozes neste tema na Flip”, continua.

A agenda de Pappe no Brasil seguiu com outras polêmicas. Na terça-feira (5), ele palestrou na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O evento foi meta de pressão da organização judaica Bnai Brith. Em uma epístola enviada ao diretor do departamento, Adrián Pablo Fanjul, a entidade manifestou “preocupação” com a presença de Pappe que, segundo o texto, alimentaria o “antissemitismo contemporâneo”. 

Fanjul respondeu que não alteraria a programação. Em ofício, afirmou que a diretoria do departamento compartilha da avaliação positiva feita pela organização do evento quanto à relevância acadêmica do convidado.

Na manhã seguinte (6), Pappe participou de outro evento na Faculdade de Recta da USP. Inicialmente divulgado porquê um ato público no Salão Sublime, o encontro acabou realocado para a Sala dos Estudantes, espaço mais recatado.

No meio tempo em que o evento perdeu espaço, a professora da faculdade e ex-secretária de Justiça da Prefeitura de São Paulo Eunice Prudente divulgou uma nota dizendo que não autorizava o uso de seu nome na divulgação de “ato político” ao mesmo tempo em que manifestou “preocupação com a escalada da violência antissemita”. A Faculdade de Recta da USP não respondeu à reportagem.

Pappe ainda iria aproveitar a passagem pelo Brasil para participar de um evento no Sesc, mas a agenda foi cancelada. Segundo a editora Elefante, que publica os livros dele no Brasil, “depois de ter oferecido porquê certa a realização de uma conferência com Pappe em uma de suas unidades na cidade de São Paulo, em um diálogo iniciado em fevereiro, na última hora desistiu de recebê-lo alegando ‘dificuldades de agenda’”. O SESC confirmou que recebeu a sugestão, “mas a proposta não avançou para um invitação formal”.

• Antissemitismo: hostilidade, preconceito ou discriminação contra judeus. Delito ligado ao racismo.

• Sionismo: movimento patriótico judaico que defende um Estado judeu na região histórica da Terreno de Israel. Alguns estudiosos apontam que o sionismo tem sido usado porquê justificativa para uma forma de colonialismo de povoamento em relação à região da Palestina.

Ainda na quarta-feira (6), no período da tarde, Pappe participou de seu último compromisso no Brasil, na Sarau Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei). O evento iria ocorrer na Terreiro das Artes, mas foi cancelado em cima da hora por decisão da Instauração Theatro Municipal, ligada à prefeitura paulistana. Ofício assinado pelo diretor da instalação, Abraão Mafra, diz que o cancelamento se deve a suposto “cunho político-ideológico”, contrário aos “princípios de neutralidade e impessoalidade que regem a gestão pública”.

A organização da Flipei refuta a justificativa e classificou o cancelamento porquê increpação. Em nota, afirmou que o “atual lobby sionista acionado por diversas instituições contra a questão palestina também se estende cá”. Segundo o produtor José Renato Fonseca, a programação havia sido previamente acordada entre as partes e não questionada. “Depois nos colocamos à disposição para conversar, mas não tivemos retorno”. O festival teve que ser reorganizado às pressas e foi realocado em outros espaços de São Paulo. 

A gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) negou increpação. Disse, em nota, que a feira tinha “teor exclusivamente de apelo ideológico, com viés eleitoral”. No entanto, em 2024, a gestão foi multada em R$ 50 milénio por utilizar o Teatro Municipal para homenagear a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, o que a Justiça considerou porquê promoção pessoal e ramal de finalidade.

A prefeitura já havia sido meta de críticas um mês antes, em julho, quando interrompeu um show da margem Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo e desligou um telão que exibia bandeira da Palestina. A margem alegou que sofreu increpação e pediu a retomada da projeção, mas teve o microfone dissociado. A prefeitura diz que o quadro de LED foi desligado e o som reduzido “preventivamente, depois falas e projeções que feriram cláusulas contratuais, com ofensas direcionadas a terceiros”.

Ao chegar à Flipei, na tarde de quarta-feira, Pappe foi recebido em mais um auditório lotado e foi aplaudido de pé por uma plateia entusiasmada – porquê nos outros eventos que participou ao longo da semana. Para ele, ser meta do lobby pró-Israel ajuda a aumentar o quórum e a sua mensagem a lucrar visibilidade.

“No final, mais pessoas escutam. Quanto mais publicam o seu livro, porque eles não gostam, mais as pessoas conhecem o livro”, ele disse à Pública, ressaltando que está avezado com ataques do lobby sionista. “Não há novidade. O lobby pró-Israel do Brasil é muito parecido com o de outros países do mundo”.

“Eles têm recursos, fazem segmento da escol. O Brasil, em privativo, está vinculado a ideologias cristãs evangélicas e sionistas nas quais muitas pessoas acreditam. A combinação entre fanatismo ideológico e moeda é muito poderosa. Por outro lado, o país é um dos poucos onde o governo é mais progressista que grande segmento da população quando o tema é Palestina”, afirmou Pappe.

Segundo a professora Arlene Clemesha, o lobby atua para rotular qualquer sátira ao governo de Israel porquê antissemitismo. “Isso é feito para blindar Israel de críticas, e traz uma confusão sobre o real sentido da termo, que está relacionada ao racismo. Isso é ruim para os judeus de todo o mundo”, afirma.

Nascido em Haifa, rebento de judeus alemães fugidos da perseguição nazista, Pappe é técnico na história contemporânea de Israel. Foi professor sênior na Universidade de Haifa entre 1984 e 2006. Em 2007, foi despedido devido à sua solidariedade com a Palestina. Hoje, vive na Inglaterra e é professor na Universidade de Exeter, onde dirige o Meio Europeu de Estudos Palestinos.

Posteriormente a publicação da reportagem, a StandWithUs Brasil enviou uma nota de posicionamento à Escritório Pública, onde esclarece que não atua com lobby de “nenhum governo, Estado ou partido político, mas sim porquê instituição educacional”. “Nossa missão é educar sobre Israel e o Oriente Médio e combater o antissemitismo, desafiando para isso a polarização e as narrativas simplistas através da exposição de dados e da estudo de um conflito extremamente multíplice”, diz o texto.

A entidade também reforçou que, “em nenhum momento tentamos impedir a vinda de Pappe ao país em qualquer dos eventos nos quais sua presença foi confirmada”. E que, “neste paisagem, a termo de contribuir para a ampliação do debate no espaço público brasílico, ao saber da fala de Ilan Pappe na Flip deste ano, buscamos sugerir e nos oferecemos para viabilizar também a vinda de outro historiador israelense, Benny Morris, para fazer contraponto na sarau literária às afirmações de Pappe.” Leia a resposta na íntegra.