Proposta de Gilmar Mendes pode remover indígenas sob justificativa de “paz social”
11 min read
Uma proposta de lei complementar, sugerida pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federalista (STF), pode levar à remoção de povos indígenas de seus territórios tradicionais. O texto prevê que, em situações de conflito antes da demarcação solene das terras, essas comunidades poderiam receber outra superfície porquê “ressarcimento”, resgatando uma prática banida pela Constituição Federalista de 1988.
Esse é um dos pontos críticos de um projeto apresentado por Mendes, porquê epílogo prévio de uma percentagem de conciliação sobre a tese do marco temporal, que retoma as discussões em março (uma sessão marcada para esta segunda-feira, 24, foi cancelada pelo ministro em seguida a Advocacia Universal da União pedir mais tempo para averiguar a proposta).
A proposta prevê várias mudanças no processo de demarcação de terras indígenas. Entre elas, estabelece que, em casos em que seja “demonstrada a absoluta impossibilidade da demarcação” e “buscando a silêncio social”, o Ministério da Justiça e Segurança Pública poderá realizar uma “ressarcimento” às comunidades indígenas, concedendo “terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas”.
A proposta não esclarece porquê ficaria demonstrada uma eventual impossibilidade da demarcação, tampouco define o que (e para quem) seria a “silêncio social”.
“Temos entendido o tema da ressarcimento territorial porquê remoções forçadas”, disse, em entrevista à Filial Pública, Verá Yapuá, assessor jurídico da Percentagem Guarani Yvyrupa (CGY), organização que representa o povo Guarani nas regiões Sul e Sudeste.
Para Yapuá e outros três especialistas em recta indígena ouvidos pela reportagem, o texto na forma em que foi apresentado é preocupante, já que a Constituição Federalista proíbe a remoção de grupos indígenas de suas terras – exceto em casos de catástrofe, epidemia ou no interesse da soberania do país (porquê em guerras), mediante decisão do Congresso Vernáculo.
Ou por outra, a Constituição estabelece o retorno inopino dos povos indígenas logo que a prenúncio deixar de viver.
“Vai transfixar margem para uma discussão: é provável os indígenas ficarem em determinada terreno ou não? E se considerarem que não for provável, para prometer a tal ‘silêncio social’, vão sacrificar o recta dos indígenas em obséquio do recta dos invasores”, questiona Juliana de Paula Batista, advogada especializada em recta indígena.
Segundo Batista, mesmo que a redação do texto não use a vocábulo “remoção”, é isso que, efetivamente, acabaria sendo permitido.
Por que isso importa
- A proposta apresentada por Gilmar Mendes altera o processo de demarcação e atinge direitos dos povos indígenas; organizações dizem que é uma tentativa de reescrever o “capítulo dos índios” da Constituição.
- O Congresso aprovou, em 2023, uma lei que estabeleceu um “marco temporal” para demarcação de terras indígenas. A manutenção dessa lei vem provocando episódios recorrentes de violência contra povos indígenas em estados porquê Paraná e Mato Grosso do Sul.
Atualmente, o Ministério da Justiça e Segurança Pública é um dos órgãos governamentais envolvidos no processo de demarcação de uma terreno indígena. Depois que a Instalação Vernáculo dos Povos Indígenas (Funai) realiza os trabalhos de identificação e delimitação de uma terreno indígena, cabe ao ministro da Justiça e Segurança Pública declarar seus limites e estabelecer medidas para efetivar a demarcação.
O texto em discussão no STF concede ao Ministério da Justiça e Segurança Pública esta novidade privilégio: a de oferecer uma ressarcimento às comunidades indígenas que não tenham suas terras demarcadas em casos em que “seja contrária ao interesse público a desconstituição da situação consolidada”, conforme estabelece a novidade proposta.
A Constituição Federalista, no entanto, não prevê nenhum tipo de realocação de comunidades indígenas em “terras equivalentes” – noção também questionado pelos especialistas.
Para o jurisconsulto Maurício Guetta, coordenador junto de Política e Recta do Instituto Socioambiental (ISA), o texto “subverte” a lógica da Constituição, que definiu terras tradicionalmente ocupadas porquê aquelas usadas para atividades e bem-estar daquelas populações e que são necessárias para a “reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
“Territórios tradicionalmente ocupados são espaços fundamentais para a manutenção física, social, cultural. Não são áreas permutáveis”, explica.
A Constituição reconheceu, portanto, que os povos indígenas estão ligados aos seus territórios não somente por características ambientais, mas também por sua história, cosmologia, tradição e cultura.
“O noção de terras equivalentes desconsidera o vínculo uno e único que os povos indígenas estabelecem com seus territórios. Há uma dificuldade estrutural por segmento do Estado de compreender isso. Não existe terreno equivalente”, diz Luis Ventura, secretário-executivo do Juízo Indigenista Propagandista (Cimi), que atua há cinco décadas no país.
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Resgate da tutela
Para Verá Yapuá, a possibilidade de povos indígenas serem realocados em áreas que não compõem seus territórios tradicionais remonta à atuação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão anterior à Funai, criado em 1910, que praticava uma política de tutela. O órgão representa os povos indígenas inclusive juridicamente, negando o treino autônomo de seus direitos.
“Criavam reservas indígenas, removiam comunidades que à idade eram consideradas – e eu acho que ainda somos considerados – um impedimento ao desenvolvimento, colocavam vários povos distintos em um mesmo território”, diz Yapuá. “Essa teoria é parecida: tem a mesma propriedade de não demarcar e providenciar uma superfície que não é aquela reivindicada pelo povo.”
O item preocupa, ainda, porque poderia ser usado de forma desfavorável aos indígenas em situação de conflito.
No Paraná, por exemplo, os indígenas Avá-Guarani foram alvo de seguidos ataques de homens armados que, no início deste ano, queimaram barracos e dispararam com pistolas e rifles na Terreno Indígena Tekoha Guasu Guavirá. Reportagem da Pública mostrou que uma garoto de 7 anos esteve entre um dos baleados em um ataque no dia 3 de janeiro.
Vários trechos do território estão sobrepostos a fazendas, e o processo de demarcação da terreno indígena ainda não foi concluído. Indefinições porquê essa vêm produzindo conflitos violentos em vários lugares em que as demarcações ainda não foram efetivadas ou finalizadas.
“É muito fácil [falar em] manter a ‘silêncio social’ quando um lado tem armas e o outro não e quando essa silêncio vem em detrimento da silêncio dos indígenas”, diz a advogada Juliana de Paula Batista. “Silêncio social vem com a garantia dos direitos previstos pela Constituição. A flexibilização eterna desses direitos sinaliza que se pode continuar processos de violência, porque eles eventualmente serão justificados.”
Porquê chegamos cá?
A proposta do ministro Gilmar Mendes, um “anteprojeto” de lei, tem 94 artigos que alteram vários pontos da legislação sobre questões indígenas.
Na última segunda-feira (17), ela foi apresentada à percentagem de conciliação sobre o marco temporal, instalada no ano pretérito pelo próprio ministro para julgar a lei (14.701/2023) que estabeleceu a data da promulgação da Constituição Federalista (5 de outubro de 1988) porquê limite para a demarcação de terras indígenas.
Segundo a lei, aprovada pelo Congresso em setembro de 2023, grupos indígenas precisam provar a presença em determinada superfície nessa data para que haja demarcação, contrariando uma decisão do próprio STF, que, somente alguns dias antes, havia considerado a tese inconstitucional.
A legislação foi, logo, contestada no STF por cinco ações judiciais, relatadas por Mendes, que decidiu fabricar uma percentagem de conciliação para discutir o tema, com 24 representantes, sendo somente seis deles indígenas que integram a Fala dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), maior organização representativa dos indígenas no país e autora de uma das ações judiciais.
As audiências começaram em agosto do ano pretérito, mas logo depois a Apib decidiu se retirar da percentagem, expondo a falta de participação indígena no processo e a escassez de transparência e de uma definição clara de quais temas seriam discutidos naquele espaço.
“O principal ponto sustentado pelo movimento indígena era o de primeiro suspender a lei [do marco temporal], porque ela vem causando conflitos nos territórios e paralisando demarcações. Porquê é que poderíamos sentar para conversar, para tentar conciliar em meio a um pouco que já está surtindo resultados nos territórios, seja com o aumento de violência, a pressão dos particulares e dos entes federados?”, questiona Yapuá.
O pedido, no entanto, não foi atendido – a lei continua em vigor até hoje – e o movimento indígena optou por deixar o processo, denunciando o que consideram não uma “conciliação”, mas uma “negociação de direitos”.
Ao longo dos últimos seis meses, a discussão continuou, mesmo sem a participação da Apib. No último dia 10, Gilmar Mendes recebeu sete propostas de modificação da lei do marco temporal. Uma delas foi sugerida pela Funai, outra pela deputada federalista indígena Célia Xakriabá. As demais vieram de partidos políticos que também são autores de ações judiciais sobre o objecto. São eles: PL em conjunto com o Republicanos, PT junto com PCdoB e PV, além de, individualmente, PDT, PSOL e PP.
Segundo o STF, o texto de Mendes foi “construído” a partir dessas sete sugestões. A proposta, no entanto, vai muito além do que foi apresentado anteriormente ao transfixar portas para mineração em terras indígenas, incluir a possibilidade de uso da Polícia Militar em ações de reintegração de posse, entre outras providências que não estavam nas sugestões, porquê é o caso da possibilidade de oferecimento de “terreno equivalente” em casos de impossibilidade de demarcação.
“Estamos vendo uma ampliação irrestrita de temas que podem até ter sido mencionados ao longo do processo, mas que não foram debatidos nem propostos ao longo das 14 sessões”, afirma Batista.
Todo o processo é inédito, porquê mostrou o repórter e colunista da Pública Rubens Valente.
“É importante evidenciar que desde o início a câmara de conciliação não é, e nunca foi, o instrumento nem o mecanismo oportuno para discutir direitos humanos fundamentais. Porque direitos humanos fundamentais não podem ser conciliados, nem modulados, nem condicionados, nem negociados. Portanto, partiram de um erro inicial, um erro do préstimo da própria instalação da mesa de conciliação”, afirma Luís Ventura, do Cimi.
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E o marco temporal?
A proposta apresentada por Gilmar Mendes acaba com o marco temporal ao estabelecer que a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas “independe da existência de marco temporal em 5 de outubro de 1988”.
Esse ponto desagradou à bancada ruralista. Na audiência da última segunda-feira (17), o deputado federalista Pedro Lupion (Progressistas-PR), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, afirmou que o marco temporal era quesito obrigatória “para qualquer tipo de negociação” por segmento deles.
“A questão do marco temporal é o objetivo principal de nós estarmos cá […]. Não havendo quesito de continuar isso cá, nós vamos continuar o nosso trabalho no Congresso Vernáculo”, disse Lupion. Sem uma decisão por segmento do STF, a estratégia da bancada ruralista é mudar a constituição para incluir o marco temporal. É o que está previsto na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48.
Apesar de colocar um termo no marco temporal, o projeto de Mendes altera de forma tão significativa a forma porquê hoje são conduzidos os processos de demarcação que, na prática, novas demarcações podem ser inviabilizadas caso a proposta venha a se tornar lei.
Os especialistas ouvidos pela reportagem destacam a inclusão de representantes de estados e municípios logo no início do processo; as possibilidades de qualquer interessado apresentar contestações e de se questionar a qualificação de antropólogos porquê fatores que podem dificultar as demarcações.
Para Guetta, do ISA, a proposta apresentada por Gilmar Mendes, por sua abrangência, é “quase uma novidade constituinte indígena”.
“O STF não pode estabelecer, em um negócio de conciliação, uma redução de patamares mínimos de proteção, sob pena de enfrentarmos um retrocesso social e perdermos pedras angulares de um padrão de recta mais largo e mais protetivo”, complementa a advogada Juliana de Paula Batista.
Mineração em terras indígenas
O projeto traz, ainda, outros pontos criticados pelas organizações indígenas e indigenistas, porquê a indenização por terreno nua (que não está prevista na Constituição); o uso da Polícia Militar em ações de reintegração de posse; a flexibilização do processo de consulta livre, prévia e informada às comunidades e a possibilidade de atividades de mineração em terras indígenas à revelia da vontade das comunidades impactadas.
No caso da mineração, a proposta estabelece que as comunidades indígenas devem ser consultadas, mas que o presidente da República poderá encaminhar ao Congresso o pedido de autorização de um empreendimento de mineração mesmo que os povos afetados se manifestem de forma contrária. Para isso, o presidente deverá provar ser imprescindível a extração mineral.
“Os povos indígenas teriam suprimido um recta fundamental, o do usufruto restrito de seu território, com [a instalação] de grandes empreendimentos, de significativo impacto, contra a sua vontade”, afirma Guetta. “E isso gerando danos ambientais que se refletem não só no contextura pátrio, mas mundial.”
As Terras Indígenas (TIs) são as áreas mais conservadas do Brasil e ocupam 13,9% do território pátrio. Um levantamento realizado pelo MapBiomas já mostrou que, nos últimos 30 anos, elas perderam somente 1% de sua superfície de vegetação nativa nos últimos anos, enquanto em áreas privadas essa perda foi de quase 20%.
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Próximos passos
A proposta apresentada por Gilmar Mendes não foi acatada pelos integrantes da percentagem de conciliação, que, na última reunião, no dia 17, debateram longamente e separaram trechos que precisam ser ainda mais discutidos. O Ministério dos Povos Indígena e a Funai criticam o texto.
O debate será retomado em março, quando haverá uma novidade audiência. Até lá, a teoria é que os integrantes da percentagem analisem a proposta e façam sugestões de aprimoramentos – “sem a formulação de novas propostas paralelas ou alternativas”, porquê determinou o ministro.
Em seguida a estudo da proposta pela percentagem, ela voltará a ser avaliada por Mendes e, depois, submetida aos demais ministros do STF. Só depois da aprovação pelo restante do tribunal é que a proposta seria levada ao Congresso Vernáculo.
Em meio a todo esse processo, Mendes ainda não julgou as cinco ações que questionaram a lei do marco temporal. O STF também ainda não finalizou o julgamento do marco temporal, já que ainda precisam julgar embargos de enunciação (recursos) que foram apresentados.