O tempo das criadas

Teresa Correia

Professora

O tempo das fadas do lar, as mulheres mais afortunadas, foi também o tempo das “criadas”, as empregadas domésticas a tempo inteiro, que viam nesta profissão um modo de evadir ao trabalho difícil do campo. Nas Beiras, muitas raparigas foram “servir”, ainda crianças, em casas particulares, aí permanecendo, por vezes, até morrer, numa espécie de subserviência vitalício.

No Solilóquio de uma mulher chamada Maria com a sua patroa, de Sara Barros Leitão, (2023) pode ler-se: “Criada vem de fabricar e significa a pessoa que nascia, crescia e morria junto do seu senhor, para o servir em todos os momentos. Criada para todo o serviço.” (p. 12) Eram mulheres do povo, viviam discretamente, pareciam não ter idade, chamavam-lhes membros da família, talvez para justificar o “quartinho” e o mísero salário a que tinham recta.

O título do texto apropriado por SBL ao teatro advém de uma obra maior da nossa literatura: Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horto e Maria Velho da Costa. Editado em 1971, dele consta o “Solilóquio de uma mulher chamada Maria, com a sua patroa”, onde a jovem pede desculpa à senhora pelos seus “ataques” que a fazem perder os sentidos, impedindo-a de dar perpetuidade às tarefas domésticas. Justifica-os com a “pancada” que lhe é desferida pelo seu “varão”, desde que voltou de África, “transtornado da cabeça” por motivo da guerra. Na “Epístola de uma mulher de nome Maria para sua filha Maria Ana a servir em Lisboa”, a mãe lamenta a “perdição” da filha que foi servir para morada de uma fidalga, contra a vontade do pai, que a queria casada e a trabalhar nos campos, porquê era habitual por aquelas paragens.

Ser empregada doméstica ou “criada” era, portanto, um modo de evadir a uma vida de miséria, num país em que ser fruto de pobre significava, quase irremediavelmente, continuar a ser pobre, requisito principalmente desfavorável para as mulheres, dotadas de pouca instrução e sujeitas aos costumes patriarcais.

Sobre a requisito de ser mulher antes e depois do 25 de Abril, Esperança Cruz Romano, assistente operacional numa escola, escreveu 171 quadras a que deu o nome Ai, Maria! que vidas. Num registo popular, exibe um olhar inteligente e corajoso sobre a vida de Benvinda, personagem médio desta estória: “Chega o pai a morada e diz:/ – Vêm falar connosco, amanhã!/ P´ra Benvinda ir servir p’ra morada/ Dum industrial na Covilhã.”; ao entusiamo do pai contrapõe-se o ceticismo da mãe, mais atenta: “Vai p’rá cidade… novidade vida/Deixa assim…a morada dos pais!/Conhecendo os patrões, oxalá!/Não vá aprazer demais!”, pois era “Generalidade, em certos senhores!/grande porte…pouca rectidão!/A troco de tudo ou de zero,/Roubam às pequenas  a inocência.”

Elas, as criadas de servir, foram elementos fundamentais na organização doméstica de muitas famílias, algumas sem terem escolhido esse rumo, outras porque foi o caminho que encontraram para depois iniciarem distintas travessias. Em todos os casos, elas ajudam a retratar uma sociedade que foi sempre mais impositiva para as mulheres, delineando percursos e ditando escolhas que as afastaram do espaço público, impedindo-as de serem livres. Revolução de Abril alterou, significativamente, as das mulheres, melhorando-a, abrindo caminho para muitas conquistas ainda em curso.

O teor O tempo das criadas aparece primeiro em Jornal Notícias da Covilhã.

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