Vendedores ambulantes do centro de São Paulo relatam rotina de violência da polícia
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Entre janeiro e maio deste ano, ao menos oito casos de violência policial contra ambulantes foram registrados no Brás, bairro do núcleo de São Paulo, considerado o maior polo de confecção de roupas do Brasil, com uma gama de lojas que distribuem esses produtos. Os dados são do Meio Gaspar Garcia de Direitos Humanos. O assassínio do senegalês Ngagne Mbaye, de 34 anos, morto por um policial no dia 11 de abril foi o vértice da violência. Ele foi atingido na bojo durante uma operação contra vendedores ambulantes.
M.*, de 38 anos, que também é senegalês e ambulante no Brás, era camarada de Mbaye e testemunhou sua morte. Ele pediu para ter sua identidade preservada por questões de segurança e contou para a Dependência Pública que a região tem sido marcada pela repressão promovida pela Operação Delegada, que tem foco no negócio de ambulantes irregulares. A iniciativa, feita por um convênio entre a prefeitura e o Governo do Estado de São Paulo, pretende substanciar o policiamento da cidade com agentes voluntários da Polícia Militar (PM) em seus dias de folga, mas a verdade tem sido de extrema violência.
Segundo o relatório do Meio Gaspar, durante uma abordagem de fiscalização da Operação Delegada, em setembro de 2024, M. foi recluso ao tentar proteger sua mercadoria. Ele teria sido criminado de lesão corporal depois uma pedra atingir um policial durante a confusão, ainda que não houvesse nenhuma evidência de que tivesse sido o responsável do lançadura, ainda de negócio com o texto. M. relatou ao Meio que foi levado a um muro nas redondezas do Brás, onde afirma ter sido agredido repetidamente por PMs.
Por que isso importa
- Violência policial contra ambulantes no bairro do Brás, em São Paulo, aumentou, segundo pesquisa do Meio Gaspar Garcia de Direitos Humanos.
- Desde o término de 2023 até agora, a organização registrou ao menos 23 casos violentos, incluindo o assassínio do senegalês Ngagne Mbaye, morto por um policial em abril.
A reportagem teve entrada ao Auto da Prisão em Flagrante registrado na 8º Delegacia de Polícia do Brás, em 10 de setembro de 2024. O documento diz somente que ele foi recluso “por suspeita de prática delitiva no sítio dos fatos”, sem mais detalhamentos.
Segundo M., ele teria sido criminado de transgressão de receptação com base em um celular supostamente furtado, que ele alega nunca ter portado. Ele contou que permaneceu recluso até a audiência de custódia, quando foi liberado. A Polícia Militar não respondeu os questionamentos da reportagem sobre o caso.

“Vim para o Brasil para ajudar minha família. Meu trabalho não prejudica ninguém, mas fui tratado uma vez que um criminoso”, relata. “Fui humilhado. Não é justo uma vez que nos tratam cá. Nos batem, levam nossas coisas. Se tentamos nos proteger, podemos ser mortos – uma vez que fizeram com meu camarada”, disse, chorando.
O informe sobre a violência contra trabalhadores ambulantes na região do Brás, elaborado pelo Meio Gaspar, afirma que a repressão policial contra esses trabalhadores aumentou nos últimos anos, em paralelo ao fortalecimento da Operação Delegada.
A história de M. é um dos 23 casos de violência contra ambulantes no Brás documentados pelo Meio desde o final de 2023 até agora. Segundo o levantamento, foram registradas três ocorrências entre novembro e dezembro de 2023, e 12 ao longo de todo o ano de 2024. Os demais casos ocorreram em 2025.
“Os policiais à serviço da Operação são os principais perpetradores da violência e de abusos contra os trabalhadores ambulantes, o que parece revelar que há um problema na própria concepção e modo de funcionamento do programa”, diz o relatório.

Nos últimos seis meses, ao menos uma vez por mês, casos de abusos e repressão policial contra trabalhadores informais no Brás foram relatados pela prelo, refletindo a perenidade de um padrão de violência sistemática no núcleo de São Paulo, aponta o documento.
Os registros presentes no levantamento, alguns encaminhados à Defensoria Pública do Estado e outros à Ouvidoria da Polícia de São Paulo, apontam para um padrão sistemático de abusos cometidos por agentes da Polícia Militar durante a Operação Delegada. “O número de denúncias registradas é extremamente subnotificado, tendo em vista que não são todas as situações que ocorrem que chegam até nós”, explica Ananda Endo, advogada do Meio Gaspar Garcia.
“O pânico já era estável antes do assassínio [de Mbaye], porque a repressão no Brás e o clima de intimidação fazem segmento do cotidiano. Mas depois dessa tragédia muitos ambulantes estão aterrorizados, a maioria não quer denunciar, dar depoimentos, se expor, ser identificado. Ninguém garante a segurança de quem está ali, todos os dias trabalhando no Brás, refém da discricionariedade das forças de segurança e de outros atores com poder e influência no território”, afirma Endo.
Extrema violência
O relatório descreve casos de extrema violência, uma vez que o que ocorreu em 18 de janeiro de 2025, quando um outro ambulante senegalês foi agredido por PMs durante uma operação de fiscalização no Brás. Imagens registradas por testemunhas mostram o momento em que o trabalhador leva um disparo de arma de choque próximo ao olho e, já tombado no solo, é chutado por um dos agentes. O projétil foi retirado em cirurgia, mais de 24h depois do ocorrido. Segundo o documento, o imigrante que mora em Guarujá, no litoral paulista, estava na região somente para fazer compras e não para expor mercadorias.
Em outro caso, de outubro de 2024, policiais xingam e ofendem um ambulante marfinense com palavras xenófobas e racistas. Em um vídeo, obtido pela GloboNews, é provável ouvir os PMs dizendo: “você não tá no seu país não” e “vem cá ‘negrinho’”. De negócio com o Meio Gaspar Garcia, o mesmo imigrante já havia sofrido violência em outro momento, quando apreenderam suas mercadorias, celular e a carteira junto com o seu protocolo de refúgio.
O ambulante F., 39 anos, senegalês e camarada de Ngagne Mbaye, contou, em quesito de anonimato, que já perdeu mercadorias diversas vezes, mas que a maior perda foi ver o camarada morto diante de seus olhos. “A gente tem pânico da polícia. Quem mata a gente, quem machuca, quem bate toda hora, é a polícia. O brasiliano não é problema, o problema é a farda”, desabafou. “Quem entende português sofre mais, porque dói ouvir o que falam pra gente. E se você reagir, pode morrer”, desabafou.
Os dados colhidos pelo núcleo indicam que essas ações têm se repetido com frequência alarmante, transformando abordagens de fiscalização em episódios de violência institucional contra trabalhadores. Entre as práticas relatadas também estão: agressões físicas com cassetetes e chutes, inclusive contra pessoas caídas; prisões arbitrárias; apreensões de mercadorias sem lacre – o que inviabiliza a recuperação destes bens posteriormente; e intimidações com arma de incêndio.
Segundo Endo, a maior segmento das denúncias de violência policial recebidas pelo Meio Gaspar Garcia, e as mais graves dentre elas, “têm uma vez que vítimas pessoas negras, principalmente migrantes de países africanos e caribenhos – senegaleses, marfinenses e haitianos”. Mais de 50% dos casos presentes no levantamento são contra pessoas negras.
“O modo uma vez que essa violência é praticada torna evidente o racismo institucional, que trata esses ambulantes uma vez que inimigos. Outros trabalhadores também sofrem com as arbitrariedades da atuação policial, porém nos parece que os agentes veem maior permissividade para o uso da violência física quando se trata de pessoas negras, o que escancara uma legado profundamente colonialista incorporada no modus operandi da corporação”, frisa a advogada.
Milícia de farda e esquema de roubo
O assassínio de Ngange Mbaye ocorreu meses depois o Grupo de Atuação Peculiar de Combate ao Delito Organizado (GAECO), do Ministério Público de SP, denunciar 16 pessoas, incluindo policiais militares da ativa e reformados, por envolvimento em uma milícia que atuava extorquindo ambulantes no Brás.
A denúncia, apresentada à 1ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital, é resultado da Operação Aurora, deflagrada em 16 de dezembro de 2024, em parceria com as corregedorias da Polícia Militar e da Polícia Social.

Segundo o Ministério Público, os agentes cobravam pagamentos semanais de até R$300 e taxas anuais de R$15 milénio, chamadas de luvas, para permitir que trabalhadores autônomos permanecessem com seus pontos de venda na região. Porquê não têm entrada a crédito formal, muitos recorriam a agiotas que operavam em conluio com os próprios policiais, usando-os uma vez que cobradores violentos contra ambulantes inadimplentes. Segundo o órgão, nove denunciados já cumprem prisão preventiva.
Em São Paulo existe o Termo de Permissão de Uso (TPU), uma autorização formal para comerciantes ocuparem a via pública para fins comerciais ou de serviço. Segundo os trabalhadores ouvidos pela reportagem, a prefeitura não emite novos TPUs de forma ampla há anos e os que ainda possuem autorização denunciam que só conseguem manter seus pontos mediante o pagamento sistemático de propina.
“Quem tem TPU só consegue trabalhar porque paga a milícia. E o moeda é repartido entre o de farda, o sem farda e até gente dentro da prefeitura”, denunciou o ambulante JS, 57 anos, em entrevista à Pública. Ele pediu para não ser identificado e afirma ter presenciado colegas sendo espancados por um grupo de policiais por resistirem à retirada forçada de suas mercadorias. “Cá no Brás, as coisas só pioram. O poder público sabe de tudo isso. Não quer rematar com os ambulantes, quer manter o controle através do pânico e do moeda que circula por fora”, lamenta.
A apuração do GAECO aponta que a organização criminosa contava com profundos vínculos entre seus integrantes, incluindo uma escrivã da Polícia Social que atuava diretamente nos atos de roubo. O grupo promovia intimidações sistemáticas, autorizando ou proibindo a permanência dos vendedores em determinadas ruas, uma vez que a Rua Tiers, mediante o pagamento das taxas.
“Cá no Brás, eles não querem rematar com os ambulantes, querem manter esse jogo de gato e rato. Uma hora deixam a gente trabalhar, outra não. É nisso que a milícia de farda cresce. Todo mundo sabe disso: o prefeito sabe, o governador sabe, a polícia sabe. E a qualquer momento, pode ser a gente a próxima vítima”, disse JS, lembrando que ele próprio já foi agredido por um grupo de policiais quando tentava vender garrafas d’chuva.
A Ouvidoria da Polícia de São Paulo informou ter recebido, entre 2024 e 2025, 13 denúncias de abusos contra ambulantes e imigrantes na região do Brás, incluindo agressões, ameaças e práticas discriminatórias durante ações uma vez que a Operação Delegada. Os casos foram encaminhados às corregedorias, e a Ouvidoria afirma seguir os desdobramentos.
A Prefeitura de São Paulo informou que a Operação Delegada é financiada pela gestão municipal, mas os policiais envolvidos são subordinados exclusivamente ao Comando da PM, vinculado à Secretaria de Segurança Pública. A Secretaria Municipal das Subprefeituras destacou que apoia o negócio informal por meio do programa Tô Legítimo!, que permite ao ambulante atuar de forma desburocratizada e que, desde 2019, emitiu 7.215 autorizações temporárias e 355 portarias específicas na região da Mooca. Segundo a gestão, não há registros de denúncias contra fiscais municipais na superfície.
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que a atuação das forças policiais do estado é pautada pela legitimidade e pelo reverência aos direitos humanos, e que não compactua com desvios de conduta por segmento de seus agentes. A pasta informou que, desde 2023, mais de 550 policiais foram presos e 364 demitidos ou expulsos das corporações.
A SSP também destacou que, uma vez que estratégia de reforço da segurança no núcleo da capital, mais de 1,3 milénio vagas foram destinadas à Operação Delegada, o que teria contribuído para interromper um ciclo de 18 meses de subida nos índices de roubos e furtos. As denúncias envolvendo agentes do programa, segundo o órgão, são apuradas em sigilo pelas corregedorias competentes.